Zahi Hawass, o homem que sonhou devolver a arqueologia do Egipto aos egípcios
Onde está o seu chapéu? Zahi Hawass nem dá resposta. Só uma pequena risada e aquele olhar de "vamos lá ao que interessa". Já nos tinham avisado desta secura, que se estranha no homem que tem o emprego mais fascinante do mundo (é subjectivo, claro). É o director do Conselho Supremo de Antiguidades do Egipto, tem o poder de decisão e de descoberta sobre o extenso campo arqueológico que é aquele país. Haveremos de lhe arrancar alguma paixão, alguma excitação. Para já, falamos de determinação, que é o que a personagem de 63 anos mostra com os lábios apertados e 15 minutos para a conversa num hotel de Lisboa.
Determinações e batalhas, Hawass tem tantas. A primeira foi (e ainda é) nacionalizar a egiptologia, depois de 200 anos em que pertenceu aos outros. Por isso se diz que acredita ser essencial ao Egipto, que tem ego a mais. Há outras críticas: que escava demasiadas vezes em demasiados lugares, que exagera nas descobertas, que fica com créditos que não lhe deveriam pertencer, que quer fazer depressa o que precisava de décadas, que não quer acabar a carreira sem um achado comparável ao do túmulo quase intacto de Tutankhamon, que quer ser tudo ao mesmo tempo, um académico e uma star (desde Os Salteadores da Arca Perdida que, no terreno, adoptou o chapéu à Indiana Jones).
Na semana passada abriu mais uma frente de batalha: obrigar a Câmara Municipal de Nova Iorque a restaurar o degradadíssimo obelisco de Tutmés III, que com a legenda equívoca de "Agulha de Cleópatra" está espetado no Central Park desde 1880. Se pudesse tê-lo de volta no Egipto, Hawass ficaria contente, mas não é uma prioridade, como outras antiguidades espalhadas pelo mundo que fazem parte da sua "wish list". A campanha para a devolução dos tesouros é, talvez, a parte mais mediática do trabalho deste egiptólogo que em Lisboa recebeu um doutoramento honoris causa (a cerimónia foi ontem à tarde na Universidade Nova) e dá hoje uma conferência sobre Novas Descobertas (às 18h, na reitoria da Nova). E, neste campo das devoluções, Hawass tem novidades: "Na próxima semana vou pedir, oficialmente, [a devolução] do busto de Nefertiti."
Na mira de Hawass estão cinco mil peças, seis delas únicas pela importância histórica e pela beleza artística. Além do busto de Nefertiti, exposto em Berlim e que coube aos alemães quando a Alemanha e o Egipto dividiram o espólio da escavação em que a peça foi encontrada, há mais cinco na "lista" de Hawass: a Pedra de Roseta, que permitiu a decifração dos hieróglifos e que se encontra em Londres; a máscara de Kanefer, que está em St. Louis, nos Estados Unidos; o Zodíaco de Dendera, um baixo-relevo exposto no Louvre (Paris) que poderá ser a peça fundadora do sistema astrológico; a estátua do arquitecto da grande pirâmide e a do arquitecto da segunda pirâmide, ambas nos EUA; a estátua/busto de Ramsés II, a morar em Londres.
No século XIX e no início do XX, quando as peças saíram, o Egipto não tinha arqueologia. Era outro tempo... Que sentido faz, hoje, esta batalha pela devolução?Sim, eram outros tempos. A arqueologia era uma caça ao tesouro e o Egipto não tinha qualquer estrutura para procurar, guardar e restaurar peças. Mas vejamos o caso do busto de Nefertiti. Mesmo em 1912, a saída do busto já foi ilegal. A peça foi registada [na lista do espólio da escavação] como sendo uma princesa. Ora, tratando-se de um busto em calcário, teria que ser de uma rainha, porque as rainhas eram retratadas nesta pedra. Se a tivessem registado devidamente sabiam que não poderiam levá-la. Por alguma razão Nefertiti esteve dez anos escondida na Alemanha. São estes dados que fundamentam a nossa reivindicação.
O Egipto demorou muito tempo a olhar para as suas antiguidades. As peças foram-se degradando. Algumas delas, como a Pedra de Roseta, pôde ficar muito bem preservada [em Londres].A Pedra de Roseta também foi ilegalmente levada do país.
Repare, eu também digo que não queremos tudo. Quero a devolução do que é único. Se essas peças pertencem ao teu país, queres que fiquem no teu país. Durante muitos séculos o imperialismo dominou o Egipto. Eles [os arqueólogos estrangeiros] violaram o país, os aventureiros levaram milhares de artefactos e agora queremos que sejam devolvidos. Em Abril vamos realizar uma segunda grande conferência sobre esta temática, com a participação de 100 países, para sublinhar que tencionamos ir atrás do que nos foi roubado. Vamos encontrar uma forma de lutar como uma só nação.
Quer provocar uma revolução? Quando é que nacionalizar a arqueologia no Egipto se tornou a sua missão?No passado, os egípcios não se interessavam por escavações, restauros, eram sempre os estrangeiros a fazer isso. Não havia orgulho. Eu levei esse orgulho para o Egipto quando regressei dos Estados Unidos, em 1987 [Hawass formou-se no Cairo e só depois fez uma especialização]. Criei regras, para nós e para as equipas estrangeiras. E disse: se querem escavar, seguem as nossas regras. Se acham, têm de publicar, se escavam, têm de restaurar. Nada disto se fazia em benefício do Egipto.
Quando regressei dos Estados Unidos sabia que seria o chefe das antiguidades. Por isso, comecei a enviar equipas pelo país. Sabia que quando o momento chegasse iria depender delas. E precisei de treinar essas equipas, porque para competirmos temos que ser bons. Agora temos expedições, estamos a escavar, a fazer descobertas que antes só eram feitas por estrangeiros. Encontrámos a múmia de Hatchepsut, a família de Tut, estamos a trabalhar na múmia de Ramsés III e na família de Ramsés II. E estamos a tentar encontrar a múmia da rainha Nefertiti.
Isso seria um grande achado.Estamos a caminho de coisas importantes porque já temos conhecimentos, já sabemos fazer. Percebemos que os dois fetos encontrados no túmulo de Tutankhamon por Howard Carter, em 1925, são de filhas deste rei. A partir dos fetos podemos [através de métodos de análise genética] descobrir a múmia da mãe. Se descobrimos o túmulo da mãe, poderemos encontrar a múmia de Nefertiti, porque esta rainha era a mãe da mulher de Tutankhamon. Neste momento temos duas múmias encontradas, duas mães reais, e penso que uma delas deverá ser Nefertiti.
Quer dizer que o romance ainda não acabou, que ainda faz parte da egiptologia?Sim, sim. E é o que eu faço - eu levo esse romance às pessoas. Faço programas de televisão [para o Discovery Channel e Canal História], acabei agora o Chasing Mummies. O público gosta e sinto que estão contentes com o que faço.
Mas o seu papel e decisões também criaram muita polémica. É uma figura controversa na egiptologia. Como lida com esse estatuto?Vou dizer-lhe uma coisa: quando faço uma coisa, faço-a bem. Há pessoas com ciúmes em todo o mundo. O que eu pergunto é: "Se estão a criticar, digam-me o que fizeram e o que fizeram melhor?" Estamos a construir museus, a preservar os sítios, a proteger o nosso património. Olhem para a gestão dos sítios arqueológicos, para a mudança na lei, para a certificação dos monumentos, para a educação que estamos a dar aos egípcios [no que toca a] antiguidades. Agora os egípcios amam os seus monumentos. Já não são pedras, são pedras vivas.
A sua decisão de fechar parte do Vale dos Reis vai deixar muita gente descontente.Tenho um projecto para fazer o levantamento [com tecnologia scan] dos túmulos de Nefertari, de Seti I e de Tutankhamon de forma a fazermos réplicas exactas que os turistas poderão ver...
... São dos túmulos mais apetitosos, para quem visita.Mas a respiração, o mexer constante das pessoas, o tocar, o uso de flash mesmo sendo proibido, tudo isso está a danificar os túmulos e, se deixarmos as coisas como estão, dentro de 100 anos os estragos serão irreversíveis.
Tenho outros projectos de preservação. Dentro de seis meses vai começar um grande projecto no complexo das pirâmides. O recinto será vedado e não poderão entrar carros, cavalos, camelos - só carros eléctricos. Outro projecto é o do grande museu, no planalto de Guiza. Os laboratórios de conservação e restauro já estão prontos. Em Maio começam mais trabalhos no próprio museu. Esperamos ter uma pré-inauguração em 2012. Em todo o Egipto, estamos hoje a criar 24 museus. Isto é também uma revolução.
Qual é o seu grande desejo de arqueólogo, o que gostaria mesmo de descobrir?Estou a trabalhar em três projectos. Um é uma necrópole nova no Vale dos Reis e penso que um dos túmulos deverá ser o da mulher de Tutankhamon. Ela voltou a casar depois da morte do faraó e foi sepultada no Vale dos Reis.
O segundo projecto é a revelação dos segredos por detrás das pedras. Estamos a trabalhar com uma equipa inglesa e, em Março, vamos enviar um robô para procurar "segredos" por detrás das paredes da grande pirâmide de Quéops. Os túneis têm 20 por 20 cm e o robô é a única forma de entrar. O que espero encontrar lá é... Sinto e acredito que a câmara funerária ainda lá está, escondida na pirâmide. Quéops não pode ter construído esta estrutura arquitectónica imensa para depois ter uma sala com o sarcófago que todos pudessem roubar. No túnel sul, já chegámos a duas portas, e a uma terceira no túnel norte. E isto é o princípio de uma busca fabulosa e importante à volta da magia das pirâmides.
O terceiro projecto é encontrar a múmia e o túmulo de Cleópatra e de Marco António. São as três coisas em que estou a trabalhar com as minhas equipas, e em breve teremos novidades.
Tem um faraó favorito?Quéops. Porque construiu a grande pirâmide e, ao fazê-lo, construiu para o mundo um incrível monumento de arquitectura. Estudei-o e fiz o meu doutoramento sobre as pirâmides. Ainda hoje fazemos perguntas sobre elas.
A primeira descoberta que fiz quando voltei dos Estados Unidos foi o cemitério dos seus construtores. Provámos ao mundo que não eram escravos. Todos os dias revelamos detalhes sobre os operários. Descobrimos recentemente o "talho" - tinham carne fresca todos os dias.
Já começou a pensar na reforma? Quem lhe irá suceder?Tenho duas mil pessoas treinadas e ensinei-as a serem as melhores. E essas vão conseguir gerir [o património] depois de eu partir. Só não lhes posso ensinar a minha paixão. Mas tenho a certeza de que um dia encontrarão alguém com ela.