Os muros de Ana Vieira

"Muros de Abrigo", o nome dado à primeira exposição antológica de Ana Vieira no Centro de Arte Moderna (CAM) da Gulbenkian, é também a designação, nos Açores, dos muros de pedra que protegem as vinhas do ar vindo do mar. Esses muros, que a artista percorria em criança abrindo sucessivamente as portas que os separavam uns dos outros, introduzem o conceito que o comissário Paulo Pires do Vale escolheu para abordar a obra de Ana Vieira: o muro, fronteira entre um exterior e um interior, o público e o privado, o doméstico e o mundo.

Como sempre sucede nestas grandes antológicas do CAM, o "hall" e as peças que aí se encontram funcionam como uma espécie de introdução à obra do artista, que pode depois apresentar-se num percurso mais tradicional e cronológico, como é aqui o caso. Esse primeiro espaço é dominado por "Pronomes", uma instalação de 2001 que esteve numa galeria do Porto e, mais tarde, em S. Miguel. A peça é constituída por uma série de abrigos em tecido negro que recordam os mantos e capelos do traje regional açoriano. Os mantos estão suspensos, e são armados de forma a manterem o cair próprio de um corpo, que contudo não existe. Uma instalação áudio, que sussurra os pronomes do título, completa esta instalação.Cada manto é simultaneamente um resguardo e a indicação de uma ausência, funcionando como uma membrana que convoca memórias das mulheres que usavam este traje e a sua ausência. Esta é também a peça onde o corpo feminino é citado de forma mais explícita em toda a exposição. Noutras peças, sobretudo os "Ambientes" dos anos 70, ele surge metaforizado na casa, na sala, no recanto da costura. Num destes "ambientes", uma sala de jantar exibe uma reprodução da Vénus de Milo, símbolo da beleza feminina na arte clássica (ou seja, na nossa cultura), aqui substituindo na sua comezinha qualidade de cópia a refeição em torno da qual existe uma comunhão de presenças. O ideal clássico e a vivência tradicional da família, subvertidos - ambos são agora moldes ocos de qualquer coisa que já não existe -, são aliás uma constante dos primeiros anos da actividade artística de Ana Vieira, regressando pontualmente quando a artista sente a necessidade de trabalhar o estatuto dos modelos.

Vazios e cheios, visível e invisível: a montagem, que é de uma austeridade quase científica, segue um percurso, na nave central, que vai da visibilidade total à parcial, para terminar na invisibilidade. Os véus, muros precários e ténues que parecem impedir o trajecto mais do que delimitar fronteiras, surgem amiúde em instalações e objectos quase bidimensionais, transformando-se por vezes em membranas ténues de papel: o extenso corredor que enche quase por completo o comprimento da nave introduz-nos num ambiente translúcido, numa luz de aquário que liquidifica as formas, o que sucede nos desenhos em papel amassado que deslaçam as formas familiares da cadeira, da moldura, do espelho. Nos anos mais recentes, Ana Vieira convidou-nos por vezes a espreitar por óculos, espelhos introduzidos por trás de telas, frases que só são visíveis com lanternas.

Recordo, por exemplo, a instalação "Casa desabitada", apresentada num andar de habitação da Baixa lisboeta em 2004, que aqui não é evocada do modo mais feliz; foi aí que este jogo de esconde e espreita, de ver o que não deve ser visto e de ocultar por trás de paredes e portas, se explicitou pela primeira vez. Ou uma instalação ("Janelas") onde imagens das janelas da casa própria, fotografadas do exterior, nos obrigam a um voyeurismo simultaneamente fascinante e perturbador.

Ana Vieira disse em tempos que toda a vida tinha fugido do objecto, e na verdade há na sua obra uma recusa da facilidade e do lado mais comercial da arte que é também uma ética. Assumindo a sua condição individual e social, bem em consonância com a produção artística internacional desde a década de 70, transforma-a em princípio estético operativo do qual não se afasta nunca. Esta é assim uma obra de uma coerência e de uma exigência notáveis, que urge colocar no seu devido lugar na arte portuguesa contemporânea.

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