O mapa-mundo do património português

Igrejas, claro, mas também fortalezas, prisões, armazéns, sedes de bancos, hotéis, liceus, cinemas, estações de correios, fábricas, roças em São Tomé, ruas e praças no Mindelo, sobrados no Brasil, casas particulares e grandes edifícios de habitação. Brasil, claro, mas também Angola, Moçambique, São Tomé, Cabo Verde. E Timor e Índia, mas também Sri Lanka e Macau, Indonésia e Birmânia, Etiópia e Tanzânia. A Fundação Calouste Gulbenkian acaba de lançar três volumes com o levantamento do património que os portugueses espalharam pelo mundo. É uma obra de peso - em mais do que um sentido.

Hoje, a partir das 15 horas, a Universidade de Coimbra organiza uma discussão crítica do projecto Património de Origem Portuguesa no Mundo. José Mattoso, que foi o coordenador do trabalho (com Mafalda Soares da Cunha), vai conversar com o professor catedrático Joaquim Romero de Magalhães, o historiador António Manuel Hespanha e o antropólogo João Pina Cabral.

A primeira pergunta que surge assim que começamos a folhear a obra e deparamos com construções tão diferentes em sítios tão diferentes do mundo (só se incluíram estruturas que ainda existem) é: como se define o que é "de origem portuguesa"?

O arquitecto Walter Rossa (que coordenou o volume dedicado à Ásia) revê-se mais no conceito de "influência" do que no de "origem", que implica uma iniciativa portuguesa (ligada em princípio à ideia de soberania sobre o território). "No caso da Ásia, se utilizasse o conceito de origem teria que reduzir muito consideravelmente o número de itens", diz. "O que temos aí são iniciativas em que os portugueses têm uma maior ou menor participação. Há áreas enormes, o golfo de Bengala, todo o Sudeste Asiático, onde Portugal não teve nunca soberania, mas em que há um papel da Igreja portuguesa, do Padroado, e de aventureiros que faziam parte da máquina portuguesa."

O caso asiático é, sublinha, "completamente diferente do do Brasil [o volume da América do Sul é coordenado por Renata Malcher de Araújo], onde havia uma civilização muito incipiente e que do ponto de vista da cultura edificada tinha pouca expressão". Na Ásia a contribuição dos portugueses funde-se com outras. "Quando olhamos para uma igreja goesa, o que vemos é uma igreja goesa, não é nem indiana nem portuguesa, mas resulta de uma fusão cultural."

No caso do Norte de África, mar Vermelho e Golfo Pérsico, Filipe Themudo Barata seguiu uma lógica semelhante. "Para mim, património de origem portuguesa seria aquele que serviria os interesses estratégicos coloniais do império português. O problema é que havia muitas situações em que os portugueses tinham arquitectos árabes ou estrangeiros a trabalhar para eles. Ou, noutros casos, como aconteceu depois da batalha de Alcácer Quibir, eram provavelmente arquitectos e engenheiros portugueses, mas prisioneiros, que voltaram a construir as fortificações de Larache."

Também o arquitecto José Manuel Fernandes, que se ocupou da África subsariana, diz preferir "o termo "matriz", ao modo do [escritor] José Eduardo Agualusa, em vez de "origem"". Isto porque "a presença ou influência portuguesa foi múltipla (em muitos territórios diferenciados, um pouco por todo o continente e ilhas vizinhas), longuíssima no tempo (quase seiscentos anos, 1415-1975), e portanto expressa em tipologias de imensa variedade (tardo-medieval, clássico-barroco, romântico-industrial, arquitectura modernista)". O mesmo não sucedeu na América ou na Ásia, "apenas no diminuto Macau e no rarefeito Timor".

Como identificar e localizar um património com esta dimensão? "A identificação foi difícil", confessa José Manuel Fernandes. "Um "calcanhar de Aquiles" desta obra é a não execução de um levantamento fotográfico específico e actual." No caso da África subsariana há ainda o problema da "rarefacção de investigadores dos PALOP [países africanos de língua oficial portuguesa]" que pudessem ser colaboradores, "a incipiência da investigação no sector/tema, e a dificuldade em determinar se muitas obras ainda existem, devido às guerras civis prolongadas que houve, e ao difícil acesso aos locais pelos investigadores".

Edifícios descaracterizados

Não há fronteiras claras. Esta é uma história de misturas, de cruzamentos, de encontros. E em muitos casos passou demasiado tempo para que se possa hoje "atribuir a origem pura". "Os portugueses chegam a um sítio e aproveitam uma parte dos amuralhados que lá estão, reconstroem-nos ou envolvem-nos com outra cintura de muralhas, destroem partes de uma mesquita e por cima constroem uma igreja, e depois os muçulmanos tomam aquilo, destroem alguns elementos religiosos e transformam-na outra vez numa mesquita."

Muitas vezes no processo os edifícios vão-se descaracterizando. "Tivemos que tirar cerca de uma dezena de entradas, porque nos três anos em que estivemos a fazer este trabalho houve edifícios que desapareceram", conta Walter Rossa. Desaparecem porque "não estão identificados nem estudados como sendo importantes" - e um dos objectivos desta obra é precisamente colmatar essa falha.

José Manuel Fernandes constatou que "nos espaços há muito não-portugueses" a atitude das populações em relação a este património é de "desconhecimento, mitificação ou mesmo adoração excessiva". Depois, há grandes contradições: "Em Angola e Moçambique, os governos recuperam lentamente conjuntos do "Estado Novo" Colonial (como a praça institucional do Kuíto), com esmero e dedicação, enquanto destroem peças modernas melhores do que as melhores existentes em Portugal (como o mercado do Kinaxixe)."

No meio desta "desorientação", tem havido apenas "uma voz de continuidade na recuperação real do chamado "património lusófono" (o que "fala" português através das pedras): a Fundação Gulbenkian".

"Quisemos nestes três volumes dar uma panorâmica objectiva da influência portuguesa no diálogo de culturas", afirma José Mattoso. "O que se pretendeu foi dar informação acerca do estado em que estão [os edifícios e monumentos], das condições históricas em que foram produzidos, de qual é o seu valor."

Esta visão alargada do que é o património português - que vai para além da ideia do que foi construído por iniciativa de portugueses - é uma boa opção, considera João Pina Cabral, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e um dos convidados para a sessão em Coimbra. "Abriram-se para lá das zonas em que o Estado português esteve presente, o que me parece muito inteligente." Há neste trabalho "uma aposta ecuménica, em ver este legado não propriamente como português mas como um espaço de coabitação".

Entre o Brasil e Macau

Um espaço em que os portugueses abriam caminho a outros contactos, criando pontes. "Havia por exemplo grande ligação entre os portugueses do Brasil e os da Ásia", lembra Pina Cabral. "Há mesmo uma cidade em Rio Grande do Norte chamada Macau. Um dia houve uma enchente e o mar subiu, vinha um barco de Macau que salvou as pessoas e as levou para terra firme, e por isso a cidade foi rebaptizada como Macau. Havia também uma influência importante de Macau em Moçambique nos anos 60 e 70, e o policiamento em Macau era feito por soldados do Sul de Moçambique."

Feito este levantamento, qual deve ser agora a posição de Portugal perante este património? Para a Gulbenkian, que tem projectos de recuperação em vários destes países, ele é uma base de trabalho. "É importante ter uma espécie de mapa do que existe para decidir, em termos de gestão desse património, o que se pode fazer", sublinha Mattoso.

É, contudo, consensual que este levantamento não pode servir de base a qualquer postura nacionalista ou a qualquer reivindicação de posse. "Não há nenhuma agência, estatal ou privada, nem mesmo se se juntarem todas, com capacidade para intervir neste património todo", afirma Walter Rossa. "Uma das regras fundamentais para a preservação é o inventário. Este conjunto de três volumes é uma primeira listagem, que pode agora ser alargada." O mais frutífero será "apresentar uma leitura deste património como algo que é da humanidade". E assim talvez seja possível "mobilizar as comunidades locais para a sua protecção."

Themudo Barata acha que a partir daqui abrem-se novas pistas. "Em Meknés [Marrocos], por exemplo, começou a surgir informação nos arquivos espanhóis e marroquinos que indica que no século XVIII havia um bairro português, onde moravam cerca de 200 prisioneiros portugueses, e que tinha uma igreja e um hospital. Sabemos onde era, mas nunca ninguém foi lá procurar."

Mas o que Themudo Barata lamenta acima de tudo é o "abandono" das comunidades locais ligadas a Portugal. "Abandonámo-los completamente, coisa que nem os espanhóis nem os italianos fizeram. Não há dinheiro para refazer tudo o que existe - é um património de tal maneira gigantesco que só o podemos preservar através do apoio às comunidades locais."

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