Pólo Sul: rivalidade entre Amundsen e Scott através dos seus diários

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O explorador Kristian Prestrud, que integrou a expedição de Amundsen, na passagem pelo Funchal Foto: DR

É uma das histórias mais contadas do longo rol das explorações humanas. A célebre corrida ao pólo Sul, em 1911, opondo o norueguês Roald Amundsen ao britânico Robert Falcon Scott, ganha pelo primeiro e tragicamente perdida pelo segundo, enfeitiçou durante um século as imaginações de todos os que gostam de aventura. Agora, Roland Huntford, especialista em expedições polares, escreveu um livro sobre o assunto. Diz-se que é "o" livro. Como é que se (re)conta uma história que já todos conhecem? Pelas vozes dos protagonistas.

Huntford já publicara, em 1979, um livro em que traçava a biografia de cada um dos dois rivais antárcticos, enquadrando-a no cenário da odisseia até ao pólo. O Último Lugar na Terra (Companhia das Letras) foi, no entender de muitos, a machadada final no culto de personalidade de Scott, durante muito tempo visto como um herói romântico e trágico. Por ser britânico, certamente, e não norueguês, Scott acabou por se tornar mais popular e conhecido do que o homem que o bateu.

E Huntford não achou graça nenhuma a isso. No livro, arrasa o oficial britânico, que considera responsável pela morte dos seus companheiros de expedição. Scott seria um diletante incompetente, com problemas de autoridade e a mania das grandezas. O mito abanou, apesar de algumas tentativas recentes para restaurar a "honra" ferida do cavalheiro. E então, três décadas depois, Huntford volta à carga: Race for the South Pole, the Expeditions Diaries of Scott and Amundsen foi publicado em Dezembro.

Reunindo num mesmo volume os diários integrais de Scott - o autor garante que as versões anteriores tinham sido amputadas de passagens mais embaraçosas para o oficial britânico - e Amundsen (este pela primeira vez traduzido para inglês), o livro volta a destacar as profundas diferenças entre os dois. Sempre em desfavor de Scott...

Em O Último Lugar na Terra, Huntford já dava livre curso aos seus sentimentos pouco abonatórios para com o oficial da Royal Navy que liderou a equipa britânica no assalto ao pólo Sul. No jornal El País, o jornalista Jacinto Antón sublinha mesmo os excessos que terá cometido, desde insinuar que Scott só foi escolhido por ser gay até ter dito que forçou um dos companheiros ao suicídio, passando pela ideia - suprema deselegância - de que a sua mulher estaria a traí-lo num hotel de Berlim enquanto ele agonizava numa tenda gelada da Antárctida.

Por entre juízos de valor e alguma tentação para chegar apressadamente a conclusões, Huntford alinhavava, no entanto, uma série de factos e observações que apontavam todos na mesma direcção: enquanto Amundsen era um profissional focado e competente, Scott era um amador à procura de fama. Para o norueguês, chegar ao pólo Sul, o último grande desafio da exploração humana naquela época, era o objectivo final. Para o britânico, seria um passo para garantir uma carreira de sucesso.

A "cacha" do DN Madeira

Apesar de manter os seus pressupostos, Huntford faz agora questão de que sejam os dois exploradores a contar a história pela sua pena. E a primeira coisa que salta à vista é o contraste entre o laconismo quase esterilizado de Amundsen e a veia poética de Scott. Os diários são colocados par a par, por ordem cronológica e, para equilibrar as coisas em termos de espaço, o autor inclui ainda o diário de um dos outros membros da equipa norueguesa.

Ficam dois exemplos, recolhidos pelo ABC, que parecem demonstrar a falta de preparação dos britânicos para o desafio que iam enfrentar. No dia em que Scott fala de "condições de tempo imprevisivelmente frias", Amundsen diz que as temperaturas eram "as esperadas". Noutra altura, Scott escreve que se levantou uma ventania e tiveram de ficar na tenda, enquanto Amundsen informava que tinham coberto a "distância prevista".

Antes de chegarmos a este "diálogo" entre Scott e Amundsen, a introdução de Race for the South Pole... fala-nos das motivações de cada um e dos seus países, dos bastidores da corrida, das estratégias e meios utilizados por cada equipa. De caminho, recupera o que terá sido uma das maiores "cachas" de sempre da imprensa portuguesa. A 7 de Setembro de 1910, o Diário de Notícias da Madeira, numa pequena notícia intitulada Ao pólo-sul, informava: "Fundeou ontem no nosso porto [do Funchal], o navio-explorador norueguês Fram, procedente de Christiania [antigo nome de Oslo], em 20 dias de viagem, conduzindo uma expedição scientífica ao pólo-sul."

Esta notícia podia ter sido uma "bomba", mas ninguém lhe prestou grande atenção, nem mesmo os correspondentes britânicos na ilha portuguesa. O Terra Nova, navio de Scott, tinha passado pelo Funchal meses antes rumo à Antárctida e o líder britânico só soube das intenções de Amundsen dias depois da publicação da notícia, através de um telegrama enviado exactamente da Madeira. A própria tripulação wnorueguesa só foi informada dos planos do seu líder no dia 9, quando se preparavam para levantar âncora.

Na verdade, Amundsen, que estava crivado de dívidas, não tornara pública a sua decisão de rumar à Antárctida, antes fazendo crer que se preparava para tentar a primeira travessia da Passagem do Noroeste, nas águas do oceano Árctico a norte do continente americano. Mas quereria fazê-lo entrando do lado do Pacífico, o que o obrigava a navegar pelo Atlântico, rodear o cabo Horn e subir toda a costa Oeste das Américas. A Madeira, portanto, estaria na rota certa para ambas as opções, pelo que a grande "cacha" do DN da Madeira acabou por ser fruto de uma leitura precipitada dos factos. Revelou-se, no entanto, premonitoriamente certeira.

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