O especialista em grandes urgências que quer "credibilizar a política"
Porque toda a família o tentou dissuadir. Toda. A mulher, Luísa Nemésio, avisou-o de que ia "passar de bestial a besta" num ápice. Mas Nobre não cedeu. "Teimoso", "tenaz", "inquieto", como o descrevem vários amigos, impelido por "um chamamento ético e idealístico", como o próprio faz questão de afirmar, avançou contra ventos e marés e foi o segundo a anunciar a candidatura, em Fevereiro.
Se fosse vivo, o pai também teria torcido o nariz. "Dizia que a política é uma porcaria", conta a sua irmã Leonor, vice-presidente da AMI, que recorda Fernando ainda rapazinho, em Angola, onde nasceu, e já a insistir que queria ser médico "para ajudar as pessoas".
"Candidatar-se foi uma das decisões mais heróicas que tomou até hoje: entrou numa guerra completamente diferente", avalia o jornalista José Manuel Barata-Feyo, amigo pessoal de Nobre e principal responsável pela sua vinda para Portugal, há 25 anos.
"Fez-me a maior confusão ver os comentários na Net. Noventa por cento eram a cascar nele, uma coisa miserável. Os portugueses não estão preparados para pessoas diferentes", lamenta o jornalista e escritor Miguel Sousa Tavares, que também é seu amigo. "Independentemente desta aventura política, é um português notável", acentua. Se fosse eleito, até seria "um desperdício". Porquê? "Ele ia morrer de tédio..."
Não é fácil perceber o que leva um homem com o percurso de Fernando Nobre, que aos 59 anos passou por mais de 160 países e ajudou vítimas de guerras, de terramotos e de tsunamis, a investir na corrida para Belém. Podia ter simplesmente permanecido à frente da AMI, continuar a fazer 50 mil quilómetros por ano e a trabalhar 16 horas por dia, a apanhar aviões para cenários de conflitos e catástrofes e a alimentar aquele ideal romântico do homem que consagrou a vida à ajuda humanitária.
Afinal, o que é que o faz correr? "Um dever de cidadania", a necessidade de "credibilizar o mundo da política", elenca, pela centésima vez, na sua voz arrastada. "Poderá parecer ridículo a algumas pessoas, mas eu tinha que me levantar em nome dos excluídos, e de um país cujo percurso me estava a preocupar", sintetiza o médico, que se propõe, com arrojo, "Recomeçar Portugal".
Nem de direita nem de esquerda"É uma candidatura irresponsável. Não ajuda nada a situação portuguesa e prejudica a AMI", escreveu o cronista político Vasco Pulido Valente, num cáustico texto no PÚBLICO, logo no dia seguinte ao anúncio da candidatura. "Deve regressar à AMI e preocupar-se com as coisas que sabe fazer", continuava Pulido Valente, para quem uma pessoa sem experiência e currículo político não tem condições para entrar nesta corrida.
Apesar de acreditar que um candidato a Belém não necessita de ter um passado político no sentido convencional da expressão, o politólogo Manuel Meirinho Martins nota que a carreira política acaba por ser o factor mais valorizado pelos eleitores: "A candidatura de Nobre é a única que se diferencia do carreirismo político, mas acho que este papel é curto." Num país como Portugal, "sem uma sociedade civil forte e sem grande tradição de intervenção social, isto vale pouco", acrescenta. "E há alguma ingenuidade nas suas propostas, são frágeis, algumas até são irrealizáveis. Confunde funções executivas com as do Presidente da República." Um exemplo: a redução do número de deputados de 230 para 100.
Mas o que o terá feito dar este passo? "Pode ter sido induzido por incentivos, apoios que depois não se concretizaram formalmente", alvitra. Nobre sempre negou, com ênfase, que Mário Soares o estimulou a dar este passo. "Isso é insultuoso. Eu penso pela minha cabeça", declara, agastado.
"Só saberemos mais tarde até que ponto terão pesado as promessas de apoio de notáveis políticos", diz o politólogo António Costa Pinto, que atribui a entrada do médico na corrida presidencial, para além do "argumento clássico da legitimidade", o tal "dever de cidadania", à necessidade de "aumentar o seu indicador de notoriedade" na sociedade portuguesa. "Ele é um grande desconhecido, a não ser no mundo das elites. As causas humanitárias no estrangeiro não têm grande reconhecimento em Portugal."
Pouco surpreendida com a candidatura - "Fernando Nobre tem um ego exuberante" -, a eurodeputada Ana Gomes (que é apoiante de Manuel Alegre) acredita que, ao expor-se nesta campanha, o médico acaba por "mostrar as suas debilidades". A vaidade excessiva é justamente um dos "defeitos" apontados pela maior parte dos seus detractores - que preferem não dar a cara.
Discordando em absoluto desta leitura - "ele até é um tímido, é extremamente discreto" -, Barata-Feyo insiste: "Ao fim de 40 anos de jornalismo, é o homem que mais admiro à face da Terra." Também Sousa Tavares não lhe poupa elogios: "É um homem excepcional, com uma vida de altruísmo, de generosidade. Não deveria ter jogado todo o seu prestígio e esforço nesta campanha."
Os críticos ironizam também que ele é um político "nem-nem", por não se afirmar de direita ou de esquerda. Ele riposta, sarcástico: "Ainda vivemos nessa coisa do século passado! Nunca perguntei a ninguém se é de direita ou de esquerda, porque essas denominações fazem mais parte do problema do que da solução." E aos que o acusam de incoerência e o apelidam de ziguezagueante - afinal, apoiou, sucessivamente, Durão Barroso (PSD), Mário Soares (PS), António Capucho (PSD) e Miguel Portas (Bloco de Esquerda) - contrapõe que essa abrangência demonstra apenas que é um "espírito livre", não "sectário".
Quanto à controversa inscrição na Causa Monárquica, que os detractores não deixaram igualmente de resgatar no baú do passado, Nobre admite que "preencheu uma ficha em 1992", mas garante que "nunca pagou quotas". "A nossa História tem perto de nove séculos e oito são de monarquia. Não estou para gastar tempo em discussões infantis", remata.
Casa hipotecadaAlém do mar de críticas que quase o submergiu em Fevereiro, o médico viu-se entretanto envolvido numa polémica, a da sede da candidatura em Lisboa, quando o senhorio veio dizer aos jornais que este lhe devia mais de cem mil euros de renda. O sobrinho garante que a história foi deturpada e que o que estava em causa era um incumprimento do acordo inicial, que previa a ocupação de três andares do edifício, quando apenas o rés-do-chão estava disponível. O caso seguiu para tribunal, mas Nobre ficou temporariamente sem sede em Lisboa.
Percalços naturais numa campanha sem apoios partidários e que vive da carolice dos voluntários? Com uma estrutura "sem traquejo para estas andanças", ele é "claramente uma boa pessoa metida numa grande alhada", conclui Paulo Guinote no blogue "A educação do meu umbigo".
O risco de hipotecar a imagem da organização e dele próprio é real. E há pelo menos um bem que já hipotecou, literalmente: a vivenda geminada em São João do Estoril, onde vive com a segunda mulher e as duas filhas mais novas, porque a aventura da candidatura acabou por se revelar mais dispendiosa do que imaginara - "devo gastar cerca de 700 mil euros" - e os donativos particulares e empréstimos de familiares estão longe de ser suficientes. "São apostas. Houve expectativas e promessas que não se concretizaram, mas sempre afirmei que iria até ao fim", desvaloriza.
"Infelizmente, temos esta cultura de bater nos heróis nacionais", lamenta o economista João Ermida, o mandatário nacional, que acredita que, se Nobre vivesse no estrangeiro, seria "idolatrado" em Portugal, tendo em conta o seu impressionante trabalho à frente da AMI .
"Estou acostumado a meter cabeça na boca do lobo", reage o candidato, que crê possuir uma "vantagem" em relação aos outros: "Já vi muita gente morrer. Naquele instante derradeiro, apercebemo-nos de que somos efémeros, uma poeirinha."
Se por acaso fosse para Belém, o fundador da AMI passaria a ter uma vida bem menos movimentada. Porque a sua história é a de um homem em permanente actividade, alvoroço e mudança.
Recuemos no tempo. Fernando José de La Vieter Ribeiro Nobre nasceu em 1951 em Luanda, filho de pai português, do Douro, e de uma mãe com "muitas misturas". Nas entrevistas que deu, destacou sempre a miscigenação que marca o seu ADN. "Sou um embondeiro plantado no Atlântico com raízes em Portugal, França, Holanda, Brasil e Cabinda."
Aos 12 anos vai viver com os pais e os quatro irmãos para a então República Democrática do Congo, e ali permanece a estudar na escola belga local até 1966, porque uma hepatite o impediu de regressar com os irmãos mais velhos a Angola. Vê nisso o primeiro sinal do "destino". Quando a escola belga fecha, vai para Bruxelas, sozinho, com 15 anos. Estudante distinto - "com toda a humildade, no final do ano, era o melhor aluno" -, completa o curso de Medicina, abandona o sonho inicial de se especializar em cirurgia cardiotorácica e forma-se em Cirurgia Geral e em Urologia. "Dava para operar mais coisas", explica com pragmatismo.
Começa então a trabalhar e a leccionar Embriologia e Anatomia na Faculdade de Medicina da Universidade Livre de Bruxelas.Casa-se com a primeira mulher, belga, tem dois filhos, e podia ter ficado em Bruxelas como professor catedrático, a tirar próstatas e rins. "Mas o bichinho de médico do mato que sempre tive foi despertado, em meados dos anos 70, ao ler uma revista francesa que falava de uma associação - a Médecins Sans Frontières (MSF) - a pedir médicos", relata.
Criar uma ONG nacionalEm 1980-1981 ajuda a criar a secção belga da organização francesa. Até que uma missão humanitária entre a fronteira do Darfur e do Chade o catapulta para as páginas da revista francesa L"Express. "Na vida há momentos que talvez decidam por nós", reflecte agora. À equipa da MSF juntara-se na capital do Darfur um jornalista da L"Express e um fotógrafo da agência Sigma. "Quando chegámos ao controlo fronteiriço, os militares só queriam deixar entrar médicos e eu disse: "Não os abandono aqui!"" O artigo acabaria por incluir uma foto do "médico de origem portuguesa" e a equipa da Grande Reportagem da RTP, liderada por Barata-Feyo, localiza-o mais tarde em Bruxelas e acompanha-o numa missão.
Aceitando o desafio lançado pelo então ministro da Saúde, Maldonado Gonelha, o cirurgião transfere-se para Portugal, onde só tinha estado em 1975, de visita à irmã Leonor, que trabalhava na companhia de seguros Bonança. É com Leonor que Fernando lança a AMI, em 5 de Dezembro de 1984, mas só no ano seguinte se instala definitivamente em Portugal. No início não foi fácil. João Meneses Cordeiro, um dos três médicos que o acompanharam no arranque da AMI, recorda o seu "espírito prático", a sua rara "determinação" e a invulgar capacidade para "definir objectivos".
Em simultâneo, Nobre tinha que ganhar a vida. Não foi fácil. Apesar de ter sido convidado pela Ordem dos Médicos para discursar, no ano anterior, no Congresso Nacional de Medicina, não consegue ver o seu título profissional reconhecido de imediato. "Queriam que eu me estabelecesse numa localidade do interior. Então, instalei-me em Portimão, abri consultório, eu que nunca tinha feito medicina privada! Naquela altura, nem existia sítio para operar, e ajudei a lançar o Hospital Particular do Algarve."
Deixou de exercer medicina aos 50 anos, mas ainda hoje a AMI, que tem quase 200 colaboradores fixos e um orçamento anual da ordem dos 10 milhões de euros - "apenas 20 por cento do financiamento é público" -, tem uma quota e está representada na administração deste hospital privado. "É um investimento. A AMI também tem o cartão de saúde [que proporciona descontos em unidades de saúde e é fonte de receitas para a organização], além de outras coisas, porque nunca quisemos ser subsidiodependentes", explica.
Cinco mil euros por mêsCom dez centros Porta Amiga espalhados pelo país e dois abrigos nocturnos, a AMI - que o médico entretanto transformou em fundação porque se fartou de ver "associações morrer" e quis impedir eventuais "mudanças de estatutos e de corpos gerentes" - tem projectos em 40 países e um departamento ambiental em Portugal.
Luís Nobre Lucas é o director deste departamento. Aliás, no conselho de administração e na direcção da AMI predominam os Nobres. Fernando é presidente e director-geral; a irmã, Leonor, é vice-presidente e directora-geral adjunta; a mulher, Luísa Nemésio, é secretária-geral e directora-geral adjunta; os dois irmãos, Carlos e José Luís, são vogais da administração. E nos corpos gerentes ainda figuram outros familiares. "Em 200 colaboradores fixos, qual é o mal de ter uma dezena de familiares? Só tenho pena que os meus pais não tenham tido 50 filhos, porque hoje a AMI estaria mais longe." E à clássica pergunta dos cínicos - "a AMI não é um grande tacho?" -, o médico responde, imperturbável: "Não vão por aí. Ganho um pouco menos de cinco mil euros por mês. Na clínica privada bastaria operar uma próstata, vá lá, duas próstatas por mês, para ganhar isto."
O que Fernando Nobre garante é que, se chegar à Presidência da República, não abdicará "um milímetro" dos seus poderes, "implícitos e explícitos", e tudo fará para ser o motor da "mudança". "O que é preciso para recomeçar e mudar o que está mal em Portugal é trabalho, honestidade e exemplo", enumera. "Para salvar vidas tive que amputar braços e pernas. Não vou [para Belém] para me sentar numa cadeira. A Presidência da República não pode ser uma cadeira para reformados."