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Oliveira, o clássico

Manoel de Oliveira faz 102 anos no dia 11 de Dezembro e, num gesto simpático, a Lusomundo faz regressar às salas dois dos seus filmes mais antigos, mais célebres e mais importantes. "Douro, Faina Fluvial", de 1931, e "Aniki Bobó", de 1942, em cópias resultantes de trabalhos de restauro digital (como digitais, ó admirável mundo novo, são as próprias cópias a exibir), numa operação que inclui também a edição em DVD dos mesmos filmes.

"Douro, Faina Fluvial" foi o primeiro filme realizado por um muito jovem Manoel de Oliveira, que ainda não tinha 23 anos quando o filme estreou. A estreia em sala, nesse ano de 1931, forneceu, de resto, um episódio que se tornou lendário: intrigado com a pateada com que os espectadores em seu redor acolheram o final da projecção, um visitante estrangeiro (de seu nome Luigi Pirandello) teria perguntado, com genuíno pasmo, se os portugueses tinham por hábito aplaudir com os pés.

Pirandello seria apenas o primeiro de muitos estrangeiros surpreendidos com as pateadas nacionais aos filmes de Oliveira, e "Douro, Faina Fluvial" rapidamente reconhecido como um título fundamental entre o mais moderno cinema europeu da época, coisa que o tempo não cessou de confirmar. Inspirado pelos vários movimentos de "vanguarda" (os alemães, os russos) que frutificaram nos últimos anos do mudo e despertaram inúmeras vocações, "Douro" partia de um dos mais expandidos modelos dessa "vanguarda", a "sinfonia de cidade" (como o célebre filme de Ruttmann sobre Berlim), aplicado à cidade natal de Oliveira, o Porto, e particularmente à sua zona ribeirinha.

Plenamente a par do seu tempo, nesse entendimento do cinema como construção de um movimento abstracto gerado pela montagem e pela criação de ritmos e de uma musicalidade visual, "Douro" é um filme embebido pela força do concreto que é a sua matéria, humana e urbana, e é por aí que ele se transcende e transcende a sua época, vivendo hoje com o mesmo vigor com que há 79 anos. Pese toda a sua especificidade, é também, e verdadeiramente, o princípio de uma obra, por tudo o que o liga ao restante "corpus" oliveiriano. A versão levada à sala é a sonorizada com música de Luiz Freitas Branco (no DVD estarão as outras duas versões, a muda de 1931, e a que tem partitura de Emmanuel Nunes, apresentada por Oliveira em 1994).

Um dos pares mais evidentes para o "Douro" é, claro, o "Aniki-Bóbó" que Oliveira realizou 11 anos depois, praticamente na mesma paisagem, na que foi a sua primeira longa-metragem e sua primeira aventura na ficção clássica. Entre os dois filmes, Oliveira realizou um punhado de curtas-metragens e dedicou-se à sua carreira de piloto de automóveis (e depois de "Aniki", esperou mais de vinte anos para voltar à longa-metragem, com "Acto da Primavera"). Não deve ser preciso dizê-lo: "Aniki-Bobó" é um clássico da filmografia portuguesa, e o filme de Oliveira de que mesmo os alérgicos dizem gostar. A sua limpidez "naturalista" ajuda, a impressão de espontaneidade do grupo de crianças que Oliveira dirigiu também, e o magnífico uso dos cenários naturais da zona de Ribeira atribuem-lhe um alcance que se tornou - também- "documental". Pese tudo isso, "Aniki" é a primeira grande história de paixões e obsessões, ciúmes e traições, que Oliveira filmou.

Que ele tenha transposto para aquele grupo de crianças uma tão poderosa expressão de emoções "adultas" sem as violentar, sem lhes quebrar a aura de inocência, sem deixar de ter, em suma, um grupo de crianças, eis um das coisas mais extraordinárias de "Aniki-Bóbó" - seguramente um dos grandes filmes alguma vez feitos de entre os que olham a infância, mas mais ainda olham "através" da infância sem a perderem no processo. E eis portanto a história de como Carlitos entra em contacto com o lado mais negro dos seus impulsos (o crime, a mentira, a violência) por amor de Teresinha, pura história de iniciação contada como se fosse uma fábula, um conto infantil.

Tem que se registar isto: se "Aniki-Bóbó" conta as desventuras de um garoto que quer oferecer à namorada uma boneca que viu na montra duma loja, o último Oliveira comercialmente estreado, "Singularidades de uma Rapariga Loira" (loira como a Teresinha), conta as desventuras de outro "garoto" que se quer oferecer a si próprio, como namorada, a boneca que viu na montra do prédio em frente. Maneira de dizer que "Aniki-Bóbó" é, como o "Douro", sumamente oliveiriano.

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