Cantona pode fazer tremer o sistema financeiro?
"Não peguemos em armas para matar pessoas e começar uma revolução. Nos dias de hoje, é muito fácil fazer uma revolução. O sistema assenta no poder dos bancos, por isso tem de ser destruído através dos bancos", defendeu o ex-jogador, que, nos últimos anos, tem dividido o seu tempo entre o cinema e as acções de beneficência, através da Fundação Abbé Pierre, que presta apoio a pobres e sem-abrigo.
Na entrevista, dada depois da forte contestação dos franceses ao plano de austeridade, com implicações nos impostos, redução da despesa pública e aumento da idade da reforma, o antigo jogador que, ao longo da carreira, ganhou fama de "enfant terrible" - é famoso, por exemplo, o golpe de kung fu que em 1995 deu a um adepto do Crystal Palace e que lhe valeu 120 horas de serviço comunitário - sustentou que o seu conceito de revolução é simples: "Em vez de irmos para as ruas, conduzir durante quilómetros, basta ir ao banco e levantar o dinheiro. Se houver muita gente a fazer levantamentos, o sistema colapsa. Sem armas, sem sangue."
Por que é que estamos a dar destaque à entrevista de Eric Cantona, que chegou a ser apelidado de "rei" nos tempos áureos da sua carreira futebolística, no Manchester United, na década de 90? Porque a entrevista ao jornal Press Océan, de Nantes (Zona Centro), foi gravada em vídeo. E esse vídeo foi colocado no YouTube, e já registou dezenas de milhar de visitas. Bastante menos, contudo, do que os mais de quatro milhões de visionamentos que, poucos dias depois do jogo amigável entre Portugal e Espanha, já tinha o vídeo do momento em que Cristiano Ronaldo viu um golo anulado.
Mas a proposta de Cantona teve uma consequência imediata que não pode ser desprezada, já que serviu de mote a um movimento na Internet, o StopBanque, que apela aos cidadãos europeus, e não apenas aos franceses, para que façam levantamento de dinheiro, aos balcões dos bancos, num dia em concreto: 7 de Dezembro.
Já terão sido manifestadas mais de 14 mil intenções de adesão a esta iniciativa, e a mensagem do StopBanque começa a ser replicada noutros países, com destaque para a Inglaterra, e também noutras redes sociais, designadamente no Facebook.
Pode um movimento maciço de levantamentos colapsar o sistema financeiro? Em teoria, pode. É expectável que isso venha a acontecer? Não.
Guardar no colchão?Vamos aos factos. Há largas centenas de milhar de consumidores, para não falar em milhões, furiosos com o sistema bancário. A crise foi gerada no seio dos bancos - começou pelos exageros na concessão de crédito imobiliário nos Estados Unidos, o chamado "subprime" -, arrastou a economia mundial para uma recessão como não há memória, obrigando os Estados a resgatar bancos e a gastar muito dinheiro para dinamizar a economia e evitar consequências maiores.
Na sequência deste esforço, feito com recurso à emissão de dívida, os défices públicos dispararam e rebentou a crise da dívida pública, que, agora, está a obrigar os governos de vários países a lançar ambiciosos planos de austeridade que incidem fundamentalmente sobre o aumento de impostos, redução de salários, cortes na idade da reforma.
Apesar de serem centenas de milhar os consumidores descontentes, ou com vontade de fazer uma birra, seriam precisos apenas algumas dezenas de clientes para criar perturbação. Bastava dirigirem-se aos balcões, no mesmo dia, à mesma hora, para esgotar o pouco dinheiro que as agências têm em caixa ou nos cofres-fortes e criar uma situação de total paralisia do sistema. Os bancos apenas guardam uma pequena parte dos depósitos que recebem, canalizando o restante para empréstimos e para outros investimentos.
Mas, apesar da profunda revolta dos cidadãos - chamados a pagar uma factura elevada quando acham que pouco ou nada contribuíram para esta crise -, é pouco provável que o cartão vermelho pedido por Cantona ganhe muitos adeptos.
A consciência de que os prejuízos seriam superiores à vingança moral, a forte dependência e o conforto que os clientes têm nos serviços bancários - ainda que lhes seja cobrado cada vez mais por esses serviços - são razões pelas quais as fontes do sector bancário contactadas pelo P2, e que não quiseram ser identificadas, esperam que o apelo não tenha muitos seguidores.
É preciso lembrar que, à excepção dos depósitos à ordem, nem todos os depósitos a prazo são facilmente mobilizáveis, e os que são podem implicar perdas de juros se forem levantados antes do prazo.
Há também as questões da segurança. Onde se vai guardar o dinheiro. Volta-se à técnica de tesourar o colchão e enfiar lá o dinheirinho? Parece pouco provável o regresso a essa prática. Exemplo disso, no pico da crise financeira do ano passado, alguns portugueses levantaram o dinheiro que tinham nos bancos e alugaram cofres, dos próprios bancos, para o guardar.
Risco de alarme públicoEntre as muitas questões em jogo na "revolução" defendida por Cantona estão ainda os empréstimos bancários. Levantam-se os depósitos e deixam-se as dívidas? E abre-se mão das facilidades de pagamento e dos levantamentos com os cartões de multibanco e de crédito? E dos pagamentos de serviços por transferência bancária? Abdica-se das transferências feitas online e pelo serviço telefónico?
Apesar do forte descontentamento em face das pesadas comissões bancárias, ninguém quererá, nem parece ser possível, receber o ordenado e as pensões em notas, voltar a pagar tudo em dinheiro. A segurança e a comodidade são os maiores entraves a um apelo do género.
Mas o risco de alarme público é elevado. Especialmente numa altura em que se ouve falar tanto em bancarrota e em falência de Estados, o medo de perder poupanças, de ficar sem dinheiro, é muito grande. E um rumor de que não há dinheiro para satisfazer levantamentos, mesmo que na base estejam apenas razões técnicas ou de modelo de funcionamento dos bancos, pode ter consequências devastadoras.
No pico da crise do ano passado, e perante as filas de clientes às portas do Northern Rock, o Governo de Inglaterra não teve outra alternativa senão nacionalizar a instituição. Em Portugal, e para evitar o efeito de contágio a todo o sistema, numa altura em que havia um clima de medo latente, o Governo nacionalizou o BPN - Banco Português de Negócios.
Por todas estas razões, algumas pessoas da banca disseram ao P2 que esperam e desejam que a proposta do treinador da selecção francesa de futebol de praia e do movimento StopBanque não venha a ter muito seguidores. É como brincar com o fogo... pode sair alguém queimado!