Um feminista no "chat"
O performer Miguel Bonneville, 25 anos, foi um dos participantes da exposição "All My Independent Women" projecto que Carla Cruz comissariou em Coimbra a partir das NCP. Numa entrevista por "chat" com o Ípsilon, recriou o trabalho que apresentou com João Manuel Oliveira, investigador sobre políticas sociais "queer". Foi, diz, uma desculpa para voltar a abordar temas "[como] feminismo, autobiografia, género".
O que levaram à exposição foi justamente uma conversa por "chat" sobre as questões das NCP que ambos transportam para a contemporaneidade e para os seus trabalhos. Novas cartas no século XXI, feitas pela Internet.
Bonneville não tinha ouvido falar no texto mas o que lhe interessou mais foi "o facto de ser como uma manta de retalhos, de não ter uma narrativa linear, e de continuar essa ideia descontinuada, quebrada, que os trabalhos feitos por mulheres têm tido, principalmente os autobiográficos".
Dois homens no século XXI a pensar um texto feminista dos anos 70. Anacronismo? "Sou feminista", diz Bonneville. "Claro que os homens podem ser feministas. A ideia de que por se ser homem não se percebe o que é ser mulher é completamente ultrapassada. Há ainda muitas mulheres que acham que o trabalho está todo feito, que as mulheres estão emancipadas e que ser-se feminista hoje não faz sentido. Ser-se homem feminista é pior. [Mas] é uma forma de enfrentar esse 'monstro' que é o feminismo, e de quebrar a ideia básica de que [as feministas são] um bando de mulheres lésbicas e mal fodidas que queimam soutiens e não rapam os pêlos dos sovacos." R. R.
Três vozes a multiplicar por muitas
Carla Cruz, 33 anos, fez ecoar as várias vozes das NCP na sua performance "A Freira Sangrenta": "É uma espécie de oração. Fiz um estudo aprofundado sobre essa carta com outra artista, Catarina Carneiro de Sousa: lemo-la muitas vezes até a sabermos decifrar. [Na peça] apresento uma visão muito pessoal sobre a carta, junto com textos que depois escrevi, notícias de jornais e uma pintura que vou desenrolando enquanto conto uma história."
Este trabalho de Carla Cruz insere-se no projecto "All My Independent Women", iniciado em Guimarães em 2005 com uma série de artistas plásticos, escritores, actores, performers e académicos em torno, primeiro, de arte feminista (durante quatro edições), depois partindo da leitura das NCP, como a exposição deste ano, em Maio, em Coimbra.
O projecto "propõe uma visão muito contemporânea da construção do sujeito." Já não é tanto a "ideia de mulher"; quase 40 anos passados desde a publicação fazem com que o texto hoje seja lido tendo em conta um "sujeito diferente, não tão ligado ao feminino, mas mais trans-género, que problematize não só a construção do eu feminino, mas também masculino, ou 'queer'", explica Cruz.
"Sou uma artista feminista", diz, sublinhando como em Portugal há "atitudes profundamente retrógradas, porque o feminismo acima de tudo é uma ferramenta". Uma metodologia, uma "crítica institucional contínua e uma auto-crítica também, porque uma das grandes características do feminismo é ser anti-dogmático e nunca se cristalizar numa forma. Por isso também é complicado de ser compreendido, é impossível de definir 'é isto'." Raquel Ribeiro
À procura de uma personagem para este filme
O primeiro contacto com o livro, há seis anos, foi um fascínio absoluto. Tanto que, seis anos depois, Leonor Noivo, 34 anos, deu por si a realizar um documentário sobre as NCP, a estrear na Primavera de 2011: "Comecei logo a pensar como poderia fazer um filme. Li o livro todo de uma assentada, comecei a sublinhar excertos, desde a primeira página. Propus-me o desafio de o ler assim de seguida."
Concorreu ao ICA em 2005. Nunca tinha feito um filme. Entretanto, uma ficção e seis documentários da sua autoria, e participações em filmes de vários realizadores, fazem com que a primeira ideia do projecto se altere. "Era inevitável uma contextualização. Via sempre o livro escrito em 1972. A referência era a minha mãe, que me falava das três Marias quando eu era adolescente. Sabia quem eram, mas nunca tinha lido o livro. Quando o li, essas personagens vieram ter comigo."
A ideia nunca foi centrar-se nas três Marias, mas partir dos temas do livro. Havia qualquer coisa que atravessava todos estes séculos, dos anos 70 para o século XVII, "desde Mariana Alcoforado, personagem verdadeira ou não, que passava pelas NCP". Ela queria "transportar tudo para hoje": "Sabia que o filme seria sempre uma procura."
O maior obstáculo teve a ver com "as formas de fazer cinema, o que é o documentário, o que é a ficção": Leonor Noivo não queria fazer um documentário histórico ou biográfico. "Os meus filmes tiveram sempre um objecto, uma personagem, um grupo de personagens ou um espaço. Aqui, a haver personagens, serão a Mariana, ou as Novas Cartas, ou, melhor, a minha relação com tudo isso. Tem sido um obstáculo tentar conseguir perceber qual é a personagem deste filme."
É o género fluido do texto que o filme pretende ecoar: "Não sinto que esteja a retratar o processo de escrita. Mas vou tentar criar vozes diferentes para falar sobre os assuntos, e essas vozes não são neces-saria-mente discurso (conversas com pessoas de várias gerações), mas também imagens e espaços que dão corpo a essa voz." R. R.