Associação de ideias: pense em cores saturadas, mulheres polinésias, Noa Noa, boémia, pintura, colonialismo, morte por sífilis. Se chegou a Paul Gauguin (1848-1903), é o espectador ideal para a exposição "blockbuster" deste Outono da Tate Modern. "Gauguin - Maker of Myth", com cerca de 150 obras do autor e duas salas-contexto para nos explicar, afinal, que mundo era este o das viagens, das colónias, do paraíso perdido tropical e dos mitos fundadores. E gravar Gauguin novamente.
O "rewind" começa logo à entrada. Paul Gauguin como personagem e as personagens de Paul Gauguin - auto-retratos. Gauguin com óculos, Gauguin com ídolo, Gauguin jovem, Gauguin mais velho, Gauguin no sótão a tentar vingar na arte, Gauguin de chapéu Fez (ou "tarbush") negro - retrato do artista enquanto jovem corrector da Bolsa que tinha um hobby. Gauguin no Taiti, Gauguin esculpido num tiki, versão ídolo. E Gauguin moribundo, afectado pela sífilis. É a sala mapa - ali estão os elementos essenciais para a exposição. "Gauguin através do ponto de vista da sua mitificação de si mesmo e do uso que faz de mitos e histórias no seu trabalho", ajuda-nos a curadora principal da exposição, Belinda Thomson, historiadora de arte da Universidade de Edimburgo.
Bad boy
Da biografia às imagens que nos deixou (ou do que pensamos que sabemos sobre ela), dos relatos que ficaram da sua crescente rudeza, das declarações radicais, dos ataques contra as autoridades coloniais, do desgosto perante a cristianização da Polinésia francesa, Gauguin parece ser um "bad boy" primordial da cena artística moderna. "Até certo ponto ele usava essa atitude para se proteger. Ele era indubitavelmente sensível às reacções que tinha da família, dos amigos, dos críticos, e usava essa imagem para reforçar a sua 'persona'. Ele realça a sua má reputação", diz Thomson.
No fundo, desde aquela primeira sala, quer-se que a relação com Gauguin nunca mais seja a mesma. Ali está "um artista que se está a reimaginar à medida que se pinta", essencial para a nossa ideia de Gauguin hoje, atalha Thomson. E para a nossa ideia da arte de Gauguin. "O que defendo é que isto vai além do aspecto ligeiramente embaraçoso [desta "persona" pública de artista mal comportado] - esta auto-dramatização bombástica é essencial, era o que o ajudava a realizar a arte que ele imaginava produzir", diz-nos a comissária, longe das salas repletas de visitantes, com entradas esgotadas logo no primeiro dia.
Como quando se auto-retrata como Jesus Cristo em "Christ in the Garden of Olives" (1889). O "Telegraph" recorda como descreveu essa ousadia ao seu "pen pal" Van Gogh: "Há um caminho para o calvário que todos os artistas têm de percorrer". Van Gogh, com quem dividiu casa em Arles, não gostou do afastamento de Gauguin em relação às representações mais realistas. Gauguin não tinha gostado da relativa indiferença da comunidade artística de Paris e fez de si um Cristo.
Thomson fala-nos de um dos seus grandes objectivos ao montar, ao longo de três anos, muitas negociações, cruzes e riscos na sua lista de desejos esta exposição: "Queria fugir da ideia de que Gauguin se torna um artista porque vai para o Taiti, que é por isso que ele se torna um artista interessante. Claro que esse elemento é vital para o que o torna um artista maior. Mas para ele o Taiti era uma continuação, uma conclusão lógica para o rumo que tinha tomado na vida; e é certo que o seu estilo, a sua forma de trabalhar esses elementos estavam completamente desenvolvidos. Se ele tivesse ido para o Taiti só para pintar certos temas e matérias, não nos lembraríamos dele hoje". Ou seja, podemos tirar Gauguin do Taiti, mas não podemos tirar o Taiti de Gauguin.
Porque ele, nas colectâneas, nas histórias breves da pintura, nos postais "souvenir" é isto: cenas da vida quotidiana nas ilhas, a vida com e sobre as mulheres do Pacífico Sul, mulheres como que hipnotizadas pelo pintor no momento de posar, a obsessão pelo "selvagem", pelo primitivo. O viajante global que não conhecia fronteiras - só imagens em potência.
Mas se ele também é a Martinica ou as ilhas Marquesas, é Paris e a Bretanha, toda uma fase na sua obra que o "mainstream" secundarizou e em que procurou a paisagem e a inocência, subvertendo-a com a sua própria paleta e composição. A forma como construía as narrativas na sua pintura era diferente - uma linguagem visual simplificada em que combinava histórias locais com a sua visão subjectiva.
São naturezas mortas com vida ao fundo (a presença fugaz de uma rapariga em "Still Life With Fruit", de 1888), retratos, peças esculpidas em madeira, a amizade quase rival com Van Gogh ou um "Cristo Amarelo" de 1889 (um momento no primeiro dia de "Gauguin" na Tate: uma menina ruiva de totós lê sílaba a sílaba o título sob incentivo do pai; pensa por uns segundos, olha para o Cristo, olha para o pai, tenta perceber o que acabou de ler e pergunta ao pai "Como nos Simpsons?). Gauguin é um construtor do ícone de si próprio, o "selvagem do Peru" por cujos olhos queria ver o mundo (viveu os primeiros anos de vida no Peru, marca indelével), mas sobretudo um apaixonado por motivos, padrões e mitos. Dos temas sagrados, que abraçou logo na Bretanha ("Vision of the Sermon", de 1888, em que Jacob luta com o anjo, foi, como escreveu a Van Gogh, um avanço porque conseguiu "retratar uma visão mais estilizada transformada pela imaginação"), ao cristianismo passando pelos ritos do Pacífico Sul. E as mulheres, sempre as mulheres. Nos painéis de madeira esculpida que adornavam a entrada de sua casa no Taiti, que estão na Tate, lê-se "Maison du Jouir", Casa do Prazer/ do Orgasmo, propositadamente para irritar o vizinho, um bispo. As mulheres habitam as suas obras num transe arquetipal, quase são figuras e não indivíduos. Elas integram o seu mito primordial do paraíso perdido, o encantamento pela viagem, sintoma de uma cultura que se galvanizava frente aos cartazes "vintage" de cruzeiros dos grandes navios, alusivos às fotos exóticas e à pesquisa etnográfica.
Artista on the road
Gauguin em 2010. Porquê, Tate Modern? Plantamo-nos frente a "The little one is dreaming/Clovis Asleep" (1881). As imagens da criança que sonha fundem-se com as do papel de parede do seu quarto, passando do onírico ao simbólico e fazendo pontes com outros movimentos artísticos. "O que é interessante é que ele abre a porta, em termos de estilo, a uma série de movimentos subsequentes como o fauvismo, o expressionismo e também o surrealismo. E mesmo algumas estratégias que reconhecemos hoje noutros artistas, em termos de usarem a sua própria vida, a sua biografia, inscrevendo-se a si mesmos na sua arte", defende Belinda Thomson.
O que ficou de Gauguin? "Ele deu [ao mundo artístico], talvez mais dramaticamente, o direito de tudo expor, e estou a citá-lo - o sentido de libertação. Se olharmos para o que os artistas estavam a fazer na altura, havia uma grande sensação de que para se ser moderno tinha que se imitar a realidade, competir com a fotografia, mostrar a capacidade de anotar cada detalhe. E ele vai contra isso, o que foi uma enorme libertação para a geração seguinte. E fê-lo conscientemente. Acho que ele não é um 'naif', mas usa a ingenuidade e a simplicidade, a coragem como uma estratégia artística consciente para abrir novas áreas para a expressão artística", prossegue a comissária. No fundo, Gauguin é "um artista de acção, não é só um sonhador que vai para o Taiti em busca de um mundo ideal. Estava sempre mais ou menos afastado da moda, das correntes em alta".
A maior obra de Paul Gauguin será mesmo a ideia de Paul Gauguin. Cuidava da sua imagem, escolhendo o chapéu Fez para se assinalar como membro da comunidade artística, personalizava as suas bengalas e socas de madeira, era um "dandy". Sabia o que era ser um trota-mundos - os anos no Peru, o casamento com uma dinamarquesa, os seis anos na Marinha Mercante, a guerra no mar em 1870 - e cultivar diferentes personagens. O marinheiro, o marido próspero, o corrector e, enfim, o artista.
A história de Gauguin é modernista, mas "on the road": a história estava nele e não necessariamente na sua obra. Ele continha a sua própria história, como defende Thomson no catálogo. Paul Gauguin era "um artista completo. Era perseverante nas ideias que perseguia", remata Belinda Thomson.
Sendo esta a primeira grande exposição dedicada ao pintor no Reino Unido nos últimos 50 anos, a imprensa saudou-a como uma hipótese de Gauguin apresentar novamente o seu caso ao tribunal da opinião pública britânica. Outra vez a boémia, o tropicalismo, a luxúria, até a orelha de Van Gogh. Na Tate, os visitantes, isolados com os seus audioguias, serpenteiam entre as peças de olaria ou madeira e as telas, algumas demasiado familiares, como assume a curadora. Vieram, como os visitantes, de vários museus e partes do mundo.
Ainda assim, há faltas. "Não é a maior exposição que podíamos ter feito. É relativamente contida, tem 150 obras e já houve exposições num passado não muito distante com cerca de 300 obras". Mas numa era de cortes institucionais para a Cultura e sabendo-se que a organização deste tipo de mostra está limitada a um número restrito de entidades, o que significa o investimento da Tate neste "blockbuster" de Outono? "Maker of Myth" "parece apelar a um grande número de pessoas e isso é em si uma justificação. É muito difícil saber qual será o futuro das exposições a esta escala será, mas a viagem faz parte do mundo moderno. Gostaria que as exposições deste tipo, como fenómeno, não desaparecessem só porque estamos em tempos de dificuldades económicas", diz Belinda Thomson.