Traduzido em 17 idiomas, José Rodrigues dos Santos (n. 1964) vendeu mais de um milhão de exemplares dos seus livros. O último em data, "O Anjo Branco", é sobre a vida dos portugueses em Moçambique, tendo como epicentro o massacre de Wiriyamu, ocorrido a 16 de Dezembro de 1972. Assunto familiar: foi o pai, médico e presidente da Cruz Vermelha de Tete, quem denunciou as atrocidades do Exército português. Epítome da bestialidade, Wiriyamu horrorizou a opinião pública internacional, alertada pelos missionários combonianos e pelo padre Hastings, que o pôs na primeira página do "Times" de Londres. Este romance é a história do combate solitário do homem que fundou o Serviço Médico Aéreo de Tete e foi o primeiro civil a encontrar os corpos calcinados, decapitados e mutilados (mais de 400) de homens, mulheres e crianças das aldeias de Wiriyamu, Chawola e Juwau. Não é a primeira vez que a ficção portuguesa se ocupa de Wiriyamu, "o maior embaraço público de Portugal na guerra em África". José Rodrigues dos Santos afiança nunca ter lido o relatório dos acontecimentos feito pelo pai (o qual, em consequência, foi levado sob prisão de Tete para Nampula e mantido incomunicável durante meses), mas, como tratamos de literatura, o detalhe é irrelevante.A narrativa tem uma clareza exemplar. Estabelecee de forma inequívoca o nível de intervenção da DGS, facto que não exonera (mas matiza) a intervenção da 6.ª Companhia de Comandos de Moçambique, de ordinário citada como responsável única do massacre. Contudo, o relato das execuções peca por esquematismo: "O interrogador [da DGS] pôs um pé sobre o corpo inerte e depois o outro e, para espanto geral, começou a saltitar em cima do cadáver. Os comandos riram com o inusitado da situação; só mesmo da mente daquele homem poderiam vir ideias assim." Mais interessante é a descrição das sequelas: o espanto do médico face à extensão da barbárie; a perplexidade da população branca; o complexo equilíbrio de fidelidades: "Não lhe peço que negue. Peço-lhe apenas que se cale. A bem da Nação." Sob custódia da polícia política, José Branco não cede: "O que embaraça Portugal não é o meu relatório, mas o comportamento dos nossos soldados." O inspector-chefe da DGS não entende. Assim que se sabe que foi à aldeia, vendo o que viu, o director do hospital torna-se inimigo da comunidade. Mimicas, a mulher, é ostracizada pelo bispo, o governador e vizinhos: "Estou farta de ligar a toda a gente e ninguém quer falar comigo. Pessoas que eram minhas amigas..." Acento tónico no desconcerto: Mimicas não percebe.
Mas o livro não se esgota nesse trágico episódio. O pano de fundo é a emigração portuguesa para África e, em concreto, a vida dos colonos em Moçambique, nos anos 1960-70. Tudo começa em Penafiel, em 1936. Portugal é um país pobre e atrasado. O nacional-socialismo alemão está em alta. Lisboa começa a encher-se de refugiados em trânsito para o outro lado do Atlântico. Para assombro da família, José Branco, que tem Moçambique no horizonte, torna-se médico e especializa-se em medicina tropical.
O casal Branco faz parte dos que podem emigrar para Moçambique. O capítulo dedicado à viagem a bordo do "Infante D. Henrique, a jóia dos paquetes da carreira de África", permite reflexões sobre a política colonial. Nesse microcosmo, José Branco e a mulher conhecem e confraternizam com Domingos Rouco, advogado negro, e Aniceto Silva, o pide. (Domingos Rouco, ou seja, Domingos Arouca, conhecido oposicionista moçambicano: tenho ideia de que estaria preso à data em que o autor o coloca no navio, mas o pormenor não belisca a intriga.) O racismo confunde José Branco, em particular o estatuto dos "assimilados". Domingos Rouco esclarece: "Qualquer negro pode ter os mesmos direitos de um branco desde que faça prova de que é civilizado. Chamam-nos assimilados. Um negro tem de provar que goza de estabilidade económica e de um nível acima da média portuguesa. Tem de viver como um europeu, pagar impostos, cumprir o serviço militar e ler e escrever correctamente o português. Se fizer tudo isto, será classificado como assimilado e terá os mesmos direitos que um branco." José Branco não pode deixar de pensar no elevado índice de analfabetismo da "Metrópole". A chegada do casal Branco a Moçambique coincide com o início da guerra em Angola.
Em nenhuma circunstância o narrador profere juízos de valor. Podemos apenas intuir que a lembrança do massacre do Quanza Norte (Angola), onde centenas de colonos portugueses foram chacinados (em Março de 1961) por guerrilheiros da UPA, sirva de contraponto ao massacre de Wiriyamu. São conjecturas.Num livro de 670 páginas, onde, em situação-limite (a guerra), coexiste todo o tipo de gente, as cenas de sexo são naturais. O contrário é que seria estranho. Verdade que a primeira frase é sobre o "pénis enorme" de uma criança acabada de nascer (a primeira frase e as nove páginas seguintes). Mas não o devemos atrelar ao anedotário da "mingalhinha" do bebé. Afinal, "O Anjo Branco" é muito mais e melhor do que isso. Mesmo porque, doravante, tem lugar cativo na bibliografia essencial da guerra em África.