Entrevista de Adelino Gomes: A actriz que tinha um conservatório em casa

Mariana Rey Monteiro morreu quarta-feira aos 88 anos
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Mariana Rey Monteiro morreu quarta-feira aos 88 anos Daniel Rocha
Mariana Rey Monteiro morreu quarta-feira aos 87 anos
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Mariana Rey Monteiro morreu quarta-feira aos 87 anos Daniel Rocha

Os achaques da idade levam-na a cortar com as persianas a adorada luz de Lisboa. Na semipenumbra do salão, sobressai uma fotografia da mãe. Outra do marido, falecido quando ela tinha 35 anos. Sobre uma mesinha, no recanto onde recebe o PÚBLICO, no último andar de um alto prédio da Avenida Infante Santo, em

Lisboa, um pequeno livro encadernado a verde com uma placa evocativa: Debute de Marianinha 20 de Abril de 1946 lembrança de Sara e Salomão.

PÚBLICO — Esta entrevista era para ser publicada sábado passado. Mas a sua agenda carregadíssüna não permitiu o encontro. Apesar de ter abandonado o teatro, ainda mantém actividades correlacionadas?

MARIANA REY MONTEIRO — Não. Estava é nos preparativos da quadra. Tive cá em casa a família mais chegada toda: com três filhos, dez netos e quatro bisnetos e meio (vem a caminho mais um), ao todo somos já 24.

Cessou toda a actividade profissional?

Sim. Infelizmente sofro muito de reumático e tenho crises horríveis. Tem sorte em apanharme agora numa fase relativamente calma nesse aspecto. Saio muito pouco.

Nasceu no palco. Mas a sua estreia só aconteceu aos 24 anos. Antes só tinha pisado o palco aos 12 anos para uma participação num coro, na peça "A Castro", de António Ferreira, no Mosteiro de Alcobaça, não foi?

Foi e não foi. Nasci num ambiente em que não se falava de outra coisa senão de teatro e também de música. O meu avô Alexandre Rey Colaço era compositor. Por vezes também se falava em pintura, porque tinha uma tia muito talentosa, Alice Rey Colaço. A mistura dos sangues dos meus avós deu a vários membros da família sensibilidade artística: o meu avô, que era filho de um francês e de uma espanhola, nasceu em Tânger, estudou música em Madrid, casou com uma filha de uma francesa e de um alemão e foi viver para Berlim! Muitas vezes ponho-me a ver até onde vai a minha memória desses tempos... Mas ainda bem que fala nesse espectáculo ao ar livre em Alcobaça — as pessoas esquecem-se muito depressa das coisas importantes que houve, e os meus pais [Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, donos da empresa que explorou, a partir de 1929, o Teatro Nacional D. Maria II] fizeram coisas muito importantes no campo teatral. Essa foi uma delas. A minha mãe achou que era uma maneira útil para a minha educação fazer parte daquele coro. Quando houve a repetição, tinha eu 18 anos, já não entrei porque os meus pais tinham pavor que eu fosse para o teatro.

Porquê, se a vida deles era essa?

Porque viveram sempre com muitas dificuldades financeiras.

Queriam que a senhora fosse o quê?

Queriam que eu fosse casar com um rei ou com um príncipe, não sei. Adoravam-me. E sofriam muito com a profissão. Tiveram muitas dificuldades em todos os aspectos — as "tournées" pelo país inteiro em instalações precárias e primárias; despesas com o elenco e com a montagem das peças que incluíam Shakespeare, Molière, Schüler, os modernos americanos, a quase totalidade dos modernos portugueses — tudo isto com um subsídio anual de dois mil contos.

Aos 24 anos estreia-se, então.

Mas até lá fiz muitas outras coisas...

... Até chegou a ser secretária na Emissora Nacional (EN)...

... Do [capitão] Henrique Galvão [primeiro presidente da EN], os meus pais eram muito amigos dele. Mesmo depois do corte com Salazar [que levaria Galvão ao comando da "operação Dulcineia", de desvio do paquete "Santa Maria", em 1961] continuou sempre a ser nosso amigo. Os meus pais acharam que já não podiam resistir [à insistência de Mariana em seguir o teatro]. E então ajudaram-me da maneira mais extraordinária...

... Eles próprios a dirigiram...

A maior parte da minha carreira profissional foi dirigida por eles.

Mas essa estreia foi especial: Júlio Dantas, amigo deles, adaptou a "Antígona", de Sófocles, para a senhora. Não foi um peso excessivo, esse nome que transportava consigo?

Para o bem e para o mal. Quando me estreei tive uma grande luta comigo mesma sobre o nome que havia de escolher. Não queria magoar nem a minha mãe nem o meu pai. Daí Rey Monteiro. Agora a minha neta Mónica, quando se estreou há quatro ou cinco anos, também não quis que o nome Rey Colaço lhe fosse abrir as portas ou se tomasse um "handicap". E por isso ficou com o apelido do pai, Gamei.

Contaram-me, não sei se é lenda, que lhe chamavam, com boa intenção, claro, a "filha da mãe".

Sim, sim, sim. Como à minha mãe, coitadinha, como houve o incêndio do Nacional [em 1964] e mais tarde do Avenida [1968] passaram a chamar-lhe "a incendiária". São graças.

Esse peso familiar acompanhou-a sempre no palco?

Acompanhou. Numas partes ajudou. Mas tive sempre a preocupação instintiva de corresponder às exigências. Era um incentivo, uma chicotada que me fazia andar.

Abandonou os palcos nos anos 80 e a televisão há cinco anos. Lembra-se da última peça que viu?

Se não me engano foi o "Rei Lear", no Nacional, com o Ruy de Carvalho.

Já foi há uns três ou quatro anos. Quer dizer que voltar ao Nacional já não lhe custa?

Faz-me umas saudades loucas. Mas já não é aquele teatro. O nosso teatro, o meu teatro morreu com o incêndio. Tinha uma característica, um "cachei", uma graça, uma "patine" que nunca mais se encontra. Mas está muito bonito.

Qual foi a peça de que mais gostou na vida?

Eu gostava era de representar. Houve várias: "As Divinas Palavras", de Valle-Inclán, uma das que mais gostei de representar; adorei fazer "Diálogos das Carmelitas", do [Georges] Bemanos; adorei fazer também "Um Eléctrico Chamado Desejo", de Tennessee Williams, que não me estava nada na caixa, como se costuma dizer, mas que foi dirigida pela Henriette Morineau, uma francesa brasileira (tive um prémio); e "Equilíbrio Instável", do [Edward] Albee, no Avenida.

Que papel tem pena de não ter feito?

Sabe, nunca tive a ambição de fazer isto ou aquilo. O que tinha era uma facilidade que não sei donde é que me vinha de me encaixar no papel que me era distribuído. Aliás, isso acontece-me muito na vida: fiquei viúva [do arquitecto de interiores e campeão de esgrima Emílio Ramos Lino, irmão do célebre arquitecto Raul Lino] aos 35 anos, com três filhos menores e uma enteada de 15. Tive um desgosto que ainda hoje não sei como é que aguentei mas nunca perdi a cabeça.

O Teatro Nacional tinha um estilo. Até se dizia "representar à Nacional'', com sentido crítico. O Teatro Independente pôs isso em causa, nos anos 70. Como é que olha para o teatro que se faz hoje?

Vi há muitos anos em Paris uma peça révolucionária, feita sem cenários, nem sequer pertences de cena, chamava-se "Notre Petite Ville" [de Thomton Wüder]. Era deslumbrante: os actores conseguiam transmitir tudo o que se passava na cidade e nos sentimentos de cada membro daquela comunidade sem nada. Tudo o que seja uma renovação é sempre de seguir.

O que muitas vezes pode estragar (e repare que não me considero uma autoridade na matéria) é o bom gosto ou o mau gosto com que se fazem as coisas.

Qual foi o melhor espectáculo que viu na sua vida?

Vi uma coisa maravilhosa, em Londres, uns meses depois de me ter estreado. Fui com os meus pais e estive com um actor de quem tenho uma dedicatória, Peter Ustinov. Vi a realização do "Crime e Castigo", de Dostoievsky, maravilhosa.

Quem são para a senhora os grandes actores e actrizes de Portugal?

Há muitos. Houve um grande amigo meu, o João Vülaret, que dizia que estar-se na Companhia Rey Colaço/Robles Monteiro era um conservatório. Tinha uma enorme gama de possibilidades.

Fez as mesmas tentativas que os seus pais quando a sua neta quis seguir a carreira do teatro?

Não, não.

Porque a sociedade hoje compreende melhor?

Também, talvez. Talvez a sociedade esteja mais preparada para qualquer manifestação vocacional. É uma vida terrivelmente difícil.

Ela própria está a lutar. Com dificuldades. Mas não desiste e continua. Porque a vida de teatro tem o dom de nos agarrar com paixão. Ao ponto por vezes de nos querermos desenvencilhar e não conseguirmos.

Quando vê alguém representar, o que é que a leva dizer: "Está ali um grande actor, uma grande actriz"?

É por aquilo que ele me transmite. Quando consigo ver que ele está metido dentro do papel, não está só a declamar da boca para fora, está a viver o personagem que o autor inventou.

Está arrependida de ter seguido esta profissão?

Não. Se voltasse ao princípio faria tudo na mesma. Tenho umas saudades que me dilaceram o coração, por vezes.

A saudade é do ensaio, é da noite da estreia, é da representação, é das críticas, é das palmas?

É de tudo. De tudo isso junto. Foram muitos anos em que se viveu intensamente uma coisa que se adorava.

O pavor da crítica acompanhava-a?

A crítica a mim magoou-me sempre mas fez-me muito bem. As más críticas só me fizeram bem. Porque puxaram por mim. Parto do princípio de que um crítico é um amante de teatro.

E as palmas, fazem parte de 'quê? É a vaidade?

Isso as palmas é um caso muito sério. Nem toda a gente reage da mesma maneira. Sou um bocado um paradoxo com certas coisas. Muitas vezes a minha vaidade achava que as palmas podiam ter sido maiores. Outras passava muito bem sem elas. Gostava que me elogiassem, mas o barulho das palmas nem sempre me seduziu como seduzia a muitas pessoas que conheci.

O mundo dos actores e das actrizes é também um mundo de invejas, diz-se.

Esse aspecto foi muito forte ao longo da sua carreira?

A princípio era natural que colegas minhas tivessem invejado a minha posição. Mas isso fez, por outro lado, que eu me tomasse também mais amiga delas, porque não as queria escandalizar.

É-se actor ou actriz no palco e na vida?

Eu nunca fui capaz de representar cá fora.

A minha mãe morreu aqui em casa e uma das coisas que me disse foi: "Vai-me dar este recado assim assim ao telefone." Era um recado difícil, era para não magoar alguém. "Ai mãe, custame tanto ir fazer isso!" A frase que ela me disse foi esta: "Tu és actriz suficiente para o poderes fazer." Eu disse-lhe: "Mãe, por que é que não havemos de ser todos, sempre, pão-pão, queijo-queijo?" Ela olhou para mim e respondeu: "Com a nossa educação é impossível." É isso.

Por vezes sinto que não quero magoar o próximo; outras isso não me deixa ser tão menos actriz como eu gostaria.

Alguma vez se sentiu um pedaço das personagens que representou?

Enquanto estava a trabalhar. Há um trabalho técnico que deve ser feito que consiste em ir papagueando as palavras enquanto fazemos outra coisa. Acontece por vezes que sem querer acabamos por fazê-lo com vigor, com moleza, enfim, com aquilo que o personagem pede. Mas nunca misturei, nem eu nem os meus pais, a vida do teatro com a vida privada. Saíamos do teatro, a vida privada era outra coisa; a vida privada ficava para trás quando entrávamos no teatro.

A "injustiça" da televisão

De um dia para o outro, o reconhecimento popular chegou. Por via da televisão, que lhe ofereceu o que décadas a representar Shakespeare e Molière não tinham conseguido. Já no fim da vida de sua mãe, contracena com ela na série "Gente Fina É Outra Coisa". Como foi essa experiência televisiva?

Não foi mal, mas o meu papel era um pouco episódico, fazia uma criadinha que a acompanhava sempre. A arte de representar na televisão é que me seduziu muito. É muito diferente do teatro. Neste há toda aquela barreira que tem que se saltar para chegar ao público. Eu gostava muito da naturalidade, que já vinha de trás, no teatro, e se via nos filmes ingleses e franceses. E tentei pôr em prática isso que sempre desejei. Não há dúvida nenhuma que na televisão quanto mais natural se for, melhor. A televisão apanha tudo, é uma espécie de raio-x. Quantas vezes me aconteceu visionar uma cena e pensar "credo, não tenho aquela ruga", chegar a casa, ir à procura e cá estava a ruga, só que eu não a tinha visto ainda...

Passou a vida inteira a representar e a ser aplaudida e depois chega um dia, faz uma telenovela (não vamos discutir-lhe os méritos) e torna-se famosa...

Quantas vezes eu digo isso: o que é o poder de uma caixinha que entra na casa de todas as pessoas! [Pessoas] Que nunca tiveram preparação para poder apreciar um Shakespeare, um Schiller, um Molière, um Vaüe-Inclán. Tantos textos assombrosos, uma vida inteira até às sete novelas que fiz, com um trabalho insano de decorar textos daquele calibre. Algumas pessoas de uma certa elite sabiam quem era, mas os portugueses em geral ignoravam. Ainda hoje agradeço a qualquer pessoa que se aproxime de mim para me cumprimentar. Mas o meu trabalho maior...

... Desse não têm memória. Pode-se ser actor ou actriz só no estúdio?

Sempre que se traduz um sentimento (uma dor, uma alegria, amargura), quer com a técnica teatral quer com a técnica televisiva ou cinematográfica, e se consegue chegar a um público, eu acho que é uma faceta da representação.

Há bons actores jovens na televisão?

Começo a ver menos bem. Mas tenho visto coisas muito interessantes. Por exemplo, a Fúria de Viver, na SIC, em que entrava o Nicolau [Breyner], a Rita Ribeiro, o Nuno Lopes, que agora está no Brasil, a Margarida Vila-Nova.

A maldição de Macbeth Ao contrário da maioria dos seus colegas, Mariana Rey Monteiro não é supersticiosa. Mas um dia um cenógrafo inglês anunciou-lhe uma maldição. A companhia Amélia Rey Colaço/ Robles Monteiro sofreu dois incêndios representando a mesma peça. Há quem fale em maldição. Como aconteceu isso?

Estava um dia a conversar com o cenógrafo inglês que tinha vindo acompanhar "Macbeth" [de Shakespeare] e de repente sinto que é quase a minha altura de entrar em cena. Ele diz-me, estávamos ainda em ensaios: "Já vai? Então e não diz a primeira fala da Titânia [da peça 'Sonho de Uma Noite de Verão', também de Shakespeare]?" Respondo-lhe que sei a fala de cor e salteado mas que de momento não me lembrava, e entro. E ele disse: "Tenha cuidado. Se você não disser a primeira fala da Titânia, qualquer coisa vai acontecer de grave." E aconteceu? Em doze dias!

A senhora não era supersticiosa?

Nunca fui, ao contrário de tantos colegas. Olhe, o José de Castro, esse era doente. Tudo o que fizesse na estreia tinha que repetir durante todo o tempo que a peça estivesse em cena. Lembro-me que numa peça do lonesco, eu estava a acabar de arranjar o cabelo e ele apareceu-me por detrás a olhar para o espelho e perguntou: "Achas que estou bem?" "Estás muito bem." Todas as noites o tive a aparecer atrás de mim: "Achas que estou bem?..."

Perfil: A paixão do teatro

Apesar de não ter cursado o Conservatório, ganhou a carteira profissional depois de se apresentar perante o público num recital de 40 poemas escolhidos pela mãe.

Estreia-se aos 24 anos no palco dos pais (Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, concessionários do Teatro Nacional D. Maria n, em Lisboa), com uma adaptação da "Anügona", de Sofocles, preparada por Júlio Dantas. Maria Barroso é a sua "madrinha de cena".

Participou no fume "um Dia de Vida" (1962), de Augusto Fraga, mas recusou um convite de Hollywood, por "medo" e saudades dos pais e da luz de Lisboa. A participação em sete novelas deu-lhe a popularidade que uma vida a representar o grande repertório da dramaturgia portuguesa' e mundial nunca lhe proporcionara. Retirada dos palcos e do ecrã, não esconde o entusiasmo com que assiste aos primeiros passos da neta, Mónica Gamei, na profissão.

"A vida do teatro tem o dom de nos agarrar com paixão", diz aos 80 anos, feitos em 28 de Dezembro passado, Mariana Rey Colaço Robles Monteiro.

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