De entre as várias maneiras possíveis de medir a imponência de Joris Ivens e da sua obra atentemos nesta: não nos lembramos de outro cineasta que tenha trabalhado, e filmado, em todos os cinco continentes que a Humanidade conhece. Só lhe ficaram a faltar os pólos. Mas Ivens não cruzou só o mundo, cruzou também o século XX. A sua obra este nde-se por 60 anos, entre o final dos anos 20 e o final dos anos 80, e é o testemunho de um século, testemunho histórico e testemunho político. Da Guerra Civil de Espanha à Guerra do Vietname, da independência da Indonésia à revolução cubana, da vida dos camponeses do "midwest" americano saídos da Grande Depressão à vida dos camponeses chineses mergulhados na "revolução cultural" de Mao. Sobre tudo isto Ivens deixou testemunho, sobre tudo isto deixou a marca da sua presença e da sua personalidade - esse lirismo que pontua todos os seus filmes, mesmo os mais "políticos", e que se libertou nesse elegíaco filme de fecho, fecho de uma obra e de uma vida, "Une Histoire de Vent" (1988) - dia 15, 21h30, Cinemateca; 18, 19h30, Cinemateca.
Entrar numa retrospectiva Joris Ivens é, por tudo isto, ir ao encontro do rumor de um século. Um rumor que Ivens procurou, mas um rumor que também o sacudiu. As suas andanças, assim como os filmes que pôde fazer (que nem sempre serão os filmes que quis fazer), derivam tanto de uma vontade própria como da força das circunstâncias, também são um produto das convulsões do século XX. Em consequência, dificilmente se lhe chamaria uma obra "linear" - os críticos e comentadores têm a tendência de dividir a sua obra em blocos, em "unidades" - mas antes uma obra sinuosamente "plural", no que toca a registos, a estilos, a intenções, a condições de produção. A sua grandeza também vem desta progressão labiríntica: não nos lembramos de outro cineasta que na mesma vida tenha filmado propaganda soviética ("A Canção dos Heróis", de 1932 - dia 18, 17h30, S. Jorge; 24, 19h30, S. Jorge) e propaganda rooseveltiana ("Power and the Land", de 1941, feito sob a égide de Pare Lorentz, um dos principais intérpretes do documentário de inspiração rooseveltiana e ele próprio um grande cineasta - dia 18, 19h30, Alvalade; 23, 15h30, Alvalade; 27, 18h30, Cinemateca). Que Ivens não tenha, depois, seguido carreira em Moscovo, porque a burocracia estética e ideológica (era o tempo do "realismo socialista") recebeu mal o seu filme, e tenha sido corrido dos EUA por causa do seu passado soviético, eis dois exemplos do papel que a "força das circunstâncias" jogou na sua vida e na sua obra.
A questão política e social é fulcral na sua obra, e um dos possíveis traços de união de toda a sua diversidade. Mas não é a questão decisiva. O princípio da sua obra, filmes feitos ainda Holanda na viragem dos anos 20 para os anos 30, filmes tão célebres como "A Ponte" (1928), "Chuva" (1929), "Zuiderzee" (1930) ou "Philips Rádio" (1931) são, especialmente os dois primeiros, obras ancoradas na tradição vanguardista, anti-naturalista, que por esses anos despertou inúmeras vocações (em Portugal, Manoel de Oliveira e o "Douro Faina Fluvial"). "A Ponte" e a "Chuva" (ambos dia 21, 18h30, Cinemateca; 25, 22h, Cinemateca), filmes "abstractos", fundados num puro movimento cinematográfico construído com elementos da realidade quotidiana, dão lugar, em "Zuiderzee" e "Philips Rádio" (ambos dia 20, 21h30, Cinemateca; 22, 19h30, Cinemateca) a um olhar com uma intenção documental mais consciente (ainda que cruzada com a musicalidade e o "sinfonismo" das vanguardas), e nesse sentido abrem o caminho que Ivens nunca mais deixaria de correr.
Se filmou em todo o lado, da Austrália ao Chile, a Ásia tem lugar particular na sua obra. O seu primeiro filme asiático é de 1939 ("The 400 Million"), feito na China que lutava então contra os invasores japoneses. A partir dos anos 60, e numa altura em que o cineasta tinha já como companheira de vida e de trabalho Marceline Loridan (que estará em Lisboa), a ligação asiática tornou-se mais preponderante. Os filmes sobre o Vietname (feitos durante a guerra mas não necessariamente "sobre" a guerra), em especial "Le Dix-Septième Parallèle" (1968) - 20, 19h, Cinemateca; 21, 22h, Cinemateca), mas sobretudo "Comment Yukong Deplaça les Montagnes" (1976) - 18, 19h, Cinemateca; 21, 19h30, Alvalade), "montanha" na obra de Ivens, "pintura mural" em doze partes (vamos ver em Lisboa apenas os cinco episódios que se encontram restaurados), retrato da vida dos camponeses e operários chineses depois da "revolução cultural". O olhar de Ivens, e sobretudo o comentário "off", são apologéticos - o tempo fez de "Yukong" também um testemunho da atracção dos intelectuais europeus pelo maoísmo - mas isso não perturba o essencial: é um documento fortíssimo, próximo, que dá a ver o quotidiano chinês não no conjuntural mas no imutável. E na Ásia se concluiu esta obra, com a "história de vento", onde o deserto da Mongólia é um sonho, ou uma tela para os sonhos de Ivens - e a sua farta cabeleira branca agitada pelo vento (diríamos que é o filme onde mais conta o olhar de Marceline Loridan sobre ele) conquista-lhe uma espécie de eternidade.