Morreu o realizador de "Bonnie e Clyde"

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Arthur Penn nunca fez realmente parte da geração a que abriu as portas Foto: Fabrizio Bensch/Reuters/arquivo

Penn, falecido em Nova Iorque na noite de terça-feira, aos 88 anos de idade, não havia sido a primeira escolha para dirigir “Bonnie e Clyde”, o filme-charneira da “nova Hollywood”.

Mas François Truffaut, a primeira escolha dos argumentistas David Newman e Robert Benton, cujo guião fora abertamente influenciado pela Nouvelle Vague francesa, estava comprometido com “Fahrenheit 451” e sugeriu o nome de Penn.

Este, escaldado por anteriores experiências desagradáveis em Hollywood, começou por recusar o convite.

O seu primeiro filme, “Vício de Matar” (1958), western revisionista com Paul Newman no papel de um Billy the Kid entendido como delinquente juvenil, fora literalmente ignorado pelo estúdio.

Burt Lancaster despedira-o das rodagens de “The Train”, substituindo-o por John Frankenheimer, e o produtor Sam Spiegel afastou-o da montagem de “Perseguição Impiedosa” (1966).

Sobretudo, Penn, veterano da II Guerra Mundial formado na escola da televisão e nos dramas intensos que articulavam o desconforto do pós-guerra, não viu interesse num filme sobre dois ladrõezecos arrivistas dos anos 1930.

Warren Beatty, produtor do filme e igualmente seu actor principal, não largou o osso e lá convenceu o realizador, que ainda chegou a considerar abandonar o projecto durante a pré-produção, sentindo que o guião ainda tinha problemas.

E a rodagem não foi um mar de rosas: o actor-produtor e o cineasta andaram de candeias às avessas, e o director de fotografia Burnett Guffey, um veterano da “velha Hollywood”, abandonou a rodagem durante uma semana enfurecido pela opção de Penn de rodar apenas com luz natural.

Guffey acabaria por ganhar um dos dois Oscares (em dez nomeações) que “Bonnie e Clyde” recebeu em 1968, depois de uma carreira fulgurantemente turbulenta que viu o filme, enjeitado pelo estúdio e arrasado pelos críticos mais veteranos, tornar-se numa sensação aclamada por toda uma nova geração de críticos e de público mais jovens que perceberam a bofetada que se dava ali às convenções do cinema americano.

O filme que Arthur Penn aceitara relutantemente foi a charneira que abriu a porta à “nova Hollywood” dos anos 1970, a geração de Scorsese, Coppola, Spielberg, Lucas, Brian de Palma, Bob Rafelson ou Hal Ashby, o movimento que veio reinventar o modo como o cinema americano era pensado, filmado e mostrado. Sem “Bonnie e Clyde”, não teria havido “Easy Rider”, “A Primeira Noite”, “A Quadrilha Selvagem” e muitos outros.

Arthur Penn, contudo, era o mais improvável dos anfitriões para o fazer. É verdade que Paul Schrader, o argumentista de “Taxi Driver” e “O Touro Enraivecido”, disse dele que “trouxe a sensibilidade dos filmes europeus dos anos 1960 ao cinema americano, e abriu caminho à nova geração de realizadores americanos que estudaram cinema.”

Mas, embora não viesse da “velha Hollywood”, Penn estava longe de ser um “jovem turco”. À rodagem de “Bonnie e Clyde”, tinha já 45 anos de idade e extensa experiência na televisão em directo, onde dirigira por exemplo um dos debates entre John F. Kennedy e Richard Nixon na eleição presidencial de 1960 (que Kennedy venceria).

Tinha igualmente uma carreira de encenador de teatro e, no currículo, o sucesso público e crítico do seu segundo filme, “O Milagre de Anne Sullivan” (1962), adaptação da peça de William Gibson sobre a relação entre a cega-surda-muda Helen Keller e a sua tutora Anne Sullivan.

Penn dirigira primeiro uma produção televisiva da peça e em seguida a encenação teatral que ficou dois anos em cartaz na Broadway, antes de realizar a versão cinematográfica que valeu Oscares de interpretação a Anne Bancroft e Patty Duke, e a primeira de três nomeações (nunca concretizadas) para o Oscar de melhor realizador (as outras foram por “Bonnie e Clyde” e “O Restaurante de Alice”).

Mas o seu desencanto com o desrespeito da máquina de Hollywood, que sentira na pele com as experiências de “The Train” e “Perseguição Impiedosa”, levá-lo-ia a regressar a Nova Iorque, aos palcos teatrais e ao ensino, dos quais Beatty, que trabalhara com Penn em “Mickey One” (1965), o arrancaria finalmente em 1967.

O “segundo fôlego” que “Bonnie e Clyde” poderia dar à sua carreira, no entanto, foi significativo mas fugaz – embora tenha rodado mais pós-1967, Penn apenas dirigiu 14 longas-metragens numa carreira de 50 anos. Sinal de que o cineasta não encaixava decididamente na geração de autores que vinham agora impôr-se, mesmo que a “nova Hollywood” se mostrasse mais receptiva às suas narrativas oblíquas, que muitas vezes reviam os parâmetros do filme de género pelo prisma da sociedade conturbada que o rodeava.

“Vício de Matar” olhava para Billy the Kid como um adolescente rebelde dos anos 1950 à la “Fúria de Viver”, os tiroteios sangrentos de “Bonnie e Clyde” sugeriam uma metáfora do Vietname – seguir-se-iam o olhar ao escalpelo sobre a contra-cultura americana do “flower-power” (“O Restaurante de Alice”, 1969, baseado no êxito do cantor folk Arlo Guthrie), o western como olhar sobre a sociedade capitalista (“O Pequeno Grande Homem”, 1970) e o policial negro como reflexo existencialista (“Um Lance no Escuro”, 1975). Penn assinaria em 1976 um dos últimos estertores da “nova Hollywood” com “Duelo no Missouri”, encontro desmesurado entre Marlon Brando e Jack Nicholson para acabar de vez com o western.

Com o “blockbuster” segundo Spielberg e Lucas – um tipo de cinema que Penn achava óptimo mas se confessava incapaz de fazer – a tomar o lugar deste cinema mais intimista e europeu na produção de Hollywood após o sucesso de “Tubarão” e “A Guerra das Estrelas”, o realizador regressou ao teatro e ao ensino.

Até ao final da sua carreira, assinaria apenas mais cinco filmes, sem que nenhum deles registasse verdadeiramente junto do público ou da crítica: “Quatro Amigos” (1981), “O Alvo” (1985), “Dead of Winter” (1987), “Penn & Teller Get Killed” (1989) e o telefilme “Inside” (1996). O seu último trabalho foi, em 2001, um episódio da série televisiva “100 Centre Street”.

Arthur Penn nunca fez realmente parte da geração a que abriu as portas, mas também nunca se inseriu confortavelmente numa Hollywood que abria cada vez menos espaço para cineastas mais interessados nas pessoas e nos seus dilemas do que em fórmulas mecânicas. Mas, sem o seu contributo, a paisagem do cinema actual seria muito diferente.

Segundo filho de Sonia e Harry Penn, enfermeira e relojoeiro, respectivamente, irmão mais novo do fotógrafo Irving Penn, falecido em 2009, Arthur Penn nasceu em Filadélfia a 27 de Setembro de 1922 e faleceu em Nova Iorque a 28 de Setembro de 2010. Deixa a esposa Peggy, com quem era casado desde 1955, o filho Matthew, realizador televisivo, e a filha Molly.

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