Goste-se ou não da sua ficção torrencial, adaptar José Saramago tem-se revelado tarefa complicada, de tal modo o seu mundo conceptual parece resistir às imagens cinematográficas, carregado que está de forte carga alegórica e de sentidos que apenas parecem funcionar na página: tanto "A Jangada de Pedra" como, e sobretudo, "Blindness" evidenciavam essa pesada secura narrativa, essa busca por bizarrias representativas.
António Ferreira foi buscar para este seu filme "O Embargo", um conto de curtíssima dimensão, uma das primeiras aventuras do escritor, do tempo em que ainda era director literário da editora Estúdios Cor, mais tarde reunido em "Objecto Quase". Se optou por um texto menos complexo e dispersivo, esbarrou com uma outra dificuldade não menos insolúvel: trata-se de uma "anedota ilustrada", com escasso material narrativo que se possa desenvolver. Um homem fica prisioneiro dos caprichos do seu carro, durante um embargo petrolífero, de catastróficas dimensões, a roçar, ainda que forma subtil, o reino da ficção científica, forçando o absurdo das situações e permanecendo fechado em perigosos limites.
Diga-se, já, que o argumento procura dar a volta ao texto, complexificando-o e abrindo para outros horizontes, mais conformes à obra anterior do cineasta, um dos mais interessantes da sua geração. Desde a média-metragem "Respirar Debaixo de Água" (2000) que António Ferreira mostrara dois particulares talentos: uma extrema mobilidade de trabalho de câmara, a desvelar imaginativas soluções visuais; e um interesse acrescido por ficções familiares, por personagens de difícil inserção social e radical revolta contra o meio atabafante em que se movem.
"Esquece Tudo o Que Te Disse" (2002), o seu melhor filme até hoje, pelo menos dos que conhecemos, criava um microcosmos familiar, de conflitos surdos e confrontos geracionais com a rara noção do país real, do isolamento do indivíduo face a condicionalismos sociais e comportamentais. Por isso, o melhor de "O Embargo" passa pelo que não está em Saramago, uma família disruptiva, com um pai ausente e vulnerável e um filho desambientado, numa casa triste e depressiva. A questão é saber se esta imagem de classe encaixa na história "principal", de tal maneira temos, por vezes, a noção de que estamos perante dois filmes algo desconexos, a que nem a presença crua do real (a roulotte dos cachorros quentes e o patrão repressivo, por exemplo) consegue dar coesão.
Para agravar o problema, aparece um terceiro segmento narrativo que pretende aproveitar o ponto de partida do conto e, em simultâneo, remeter para o esforço de melhorar as condições de vida do acrescentado agregado familiar: uma sofisticada máquina de medir pés, invenção que o protagonista pretende colocar a nível industrial, esbarrando, na sua demanda, com a dificuldade de se ver livre do carro "assassino", ou melhor, "aprisionador". Ecos curiosos de "Christine", de John Carpenter, perdem-se na pequenez da anedota, na escassa definição de personagens, desde as crianças que roubam gasolina aos industriais de caricatura, a favorecer a rábula de José Raposo. Continuamos a acreditar que António Ferreira filma lindamente, mas precisará no futuro de escolher melhor o material de base: nem o conto de Saramago (o filme é melhor que o conto, diga-se) lhe fornece grandes hipóteses, nem os acrescentos resolvem uma espécie de vazio que impera.Ficamos à espera de mais ambiciosos voos de um realizador em que acreditamos.