Últimos cavalos selvagens do planeta vivem no Alentejo
Entre o Alentejo e Xinjiang, na China, há um ponto de ligação inesperado: nas duas regiões encontram-se os últimos cavalos selvagens da Terra, que em tempos recuados galoparam pelas estepes da Ásia e Europa. São conhecido por cavalos de Przewalski, o apelido do explorador russo que os descobriu numa expedição pela Ásia Central e criou condições para que fosse feita a sua primeira descrição científica em 1881.
Xinjiang fica mais de 7500 quilómetros do Alentejo, no Noroeste da China. Os seus 1,6 milhões de quilómetros quadrados, abundantes em petróleo e gás natural, atravessados por desertos, cordilheiras e planaltos, representam um sexto do território sob domínio chinês. A norte, faz fronteira com a Mongólia, o Cazaquistão; a sul, o Tibete. Encruzilhada de povos, portanto, de mongóis e cazaques até muçulmanos uigures, a principal etnia na região de Xinjiang.
No entanto, as planícies de Xinjiang lembram as do Alentejo. Até o calor seco se assemelha.
É o chinês Wang Zhenshan quem dá as boas-vindas aos visitantes chegados de Portugal, que acabam de entrar no Centro de Propagação do Cavalo de Przewalski, em Xinjiang, a hora e meia de jipe da capital da região.
Minutos antes, na auto-estrada que rasga a planície, cruzada por camiões, ladeada por sucessivas centrais térmicas, ou bombas de petróleo que oscilam ora para cima, ora para baixo, uma placa verde anuncia a proximidade do centro. Em mandarim e, invulgarmente, em inglês. Corta-se à direita, quem vem de Ürümqi, a capital da região, 120 quilómetros a sul.
Num edifício de três andares há uma sala destinada aos visitantes com informação sobre os cavalos. Na China, apenas aqui se faz a reprodução do Przewalski — embora outros locais em Xinjiang, como o Zooparque de Vida Selvagem de Tianshan, às portas da capital, tenham exemplares deste cavalo, que os turistas podem facilmente ver.
“Há três mil anos, o cavalo de Przewalski distribuía-se por Xinjiang, pela Rússia, Mongólia...”, explica Wang Zhenshan, traduzido para inglês por um dos recém-chegados.
Em meados do século XX, o seu refúgio resumia-se à bacia semidesértica de Dzungarian Gobi, que abrange grande parte do Norte de Xinjiang e se estende para a Mongólia. “Por causa da distribuição, devia chamar-se cavalo selvagem da Mongólia ou de Xinjiang”, defende o anfitrião chinês.
Mas foi essencialmente pelo apelido do coronel russo Nicolai Przewalski (1839-1888), de origem polaca, que ficou conhecido no mundo inteiro, embora também seja designado por cavalo selvagem asiático ou cavalo selvagem da Mongólia. Na região, chamam-lhe ainda takh (o plural é takhi), palavra mongol que significa “espírito”.
O coronel Przewalski era um explorador ao serviço do czar Alexandre II da Rússia e as suas expedições contribuíram para os conhecimentos de geografia da Ásia Central. Numa delas, entre 1879 e 1880, cruzou-se com um novo cavalo. Ou melhor, foi presenteado com um o crânio e a pele de um cavalo na fronteira entre a China e a Rússia.
Entregues no Museu Zoológico da Academia das Ciências de São Petersburgo, os restos do animal foram examinados pelo cientista russo Ivan Poliakov, que concluiu que aquele era um cavalo selvagem. Em 1881, um ano depois da expedição, descreveu-o oficialmente como uma nova espécie, a que deu o nome científico Equus przewalskii. Reclassificado entretanto, é agora considerado uma subespécie de cavalo selvagem, designada por Equus ferus przewalskii.
A descoberta foi sempre atribuída ao coronel Przewalski, mas hoje sabe-se que já tinha sido avistado antes por exploradores europeus. Foi mencionado pela primeira vez pelo médico escocês John Bell, que viajou, entre 1719 e 1722, ao serviço do czar Pedro, o Grande. No relato da expedição, Uma Viagem de São Petersburgo a Pequim, publicado em 1763, o médico refere a sua observação na fronteira entre a China e a Mongólia.
Caça entre as causas da extinçãoNa Europa, a descoberta oficial pelo coronel Przewalski despertou muito interesse entre os zoólogos e apreciadores de animais raros. Por volta de 1900, organizou-se a primeira captura. Na viagem entre a Mongólia e a Europa apenas sobreviveram 53, que foram distribuídos por diversos jardins zoológicos e parques biológicos.
Pouco mais de meio século desde essa captura, o último cavalo selvagem do planeta vivia os seus derradeiros momentos na natureza. Em 1969, era avistado pela última vez no habitat natural, na zona desértica do Dzungarian Gobi.
“Nos anos 70, houve uma expedição. Não encontraram nenhum cavalo. Foi considerado extinto”, conta Wang Zhenshan. “Depois disso, recebeu a atenção da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).”
Tempos houve em que diferentes cavalos selvagens tiveram uma enorme distribuição geográfica, desde as estepes da Ásia Central até à Península Ibérica. Os primeiros registos pictóricos de cavalos parecidos com os Przewalski têm mais de 20 mil anos: encontram-se em pinturas rupestres em grutas em Itália, França e Espanha, refere uma nota informativa da IUCN. Em Portugal, no vale do Côa, os cavalos são das figuras mais representadas nas gravuras rupestres ao ar livre, igualmente com cerca de 20 mil anos. Pelas características físicas representadas nas gravuras, como crina curta e erecta e patas curtas, pensa-se que os cavalos selvagens existiam em grande número naquela região.
Ainda há cerca de dez mil anos, grandes manadas de espécies de cavalos selvagens (Equus ferus) devem ter sido vulgares as planícies da Europa, Ásia e da América do Norte, relata Juliet Clutton-Brock, arquezoóloga reformada do Museu de História Natural de Londres, especialista em domesticação. No seu livro História da Domesticação dos Animais — Dos Primórdios à Actualidade, de 1999 (editado em português pela Replicação), Clutton-Brock conta que a caça pelos humanos e a ocupação de grande parte do território por florestas foram reduzindo os limites territoriais dos cavalos selvagens.
“Na América, o cavalo terá sido extinto há oito mil anos. Na Europa, as manadas de cavalos selvagens foram sendo gradualmente empurradas para leste, para os semi-desertos da Ásia Central, até que no fim do século XIX eram apenas representados por Equus ferus przewalskii, o cavalo selvagem das estepes da Mongólia”, escreve a investigadora. “Este cavalo selvagem também estaria extinto hoje, se um pequeno número não tivesse sido capturado em estado selvagem nos primeiros anos do século XX e trazido para a Europa, onde se multiplicou nos jardins zoológicos e nos parques de vida selvagem.”
Dois mil animais, no totalNo mundo inteiro, existem hoje cerca de dois mil Przewalski, distribuídos por 150 jardins zoológicos e parques. Descendem de apenas 14 animais, que foram sendo reproduzidos em cativeiro, geração após geração. Esses 14 fundadores da população actual representam assim todas as linhagens existentes antes da extinção total e são todos muito aparentados. Num dos fundadores capturados na natureza, e tidos como “puros”, detectou-se também sangue de cavalo doméstico que se reproduziu com os selvagens, explica a bióloga Maria do Mar Oom, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que há muitos anos se interessa pelos Przewalski. E sabe-se que outros dois fundadores produziram híbridos entre Przewalski e cavalo doméstico.
Uma década antes da extinção na natureza publicava-se a primeira edição do Studbook (o registo genealógico) para o cavalo de Przewalski: continha os registos de 228 animais em cativeiro entre 1899 e 1959. Em 1979, mantinham-se 385 cavalos em 75 instituições, distribuídos por 16 países da Europa, pelos Estados Unidos e Cuba.
Em 1986, os jardins zoológicos da Europa iniciavam oficialmente a cooperação para recuperar o cavalo de Przewalski, através do Programa Europeu de Reprodução em Cativeiro de Espécies em Risco (os Estados Unidos e a Austrália também têm iniciativas como esta).
Além de gerir a população em cativeiro, o programa europeu devolveu este cavalo à natureza pela primeira vez em 1992, com a libertação de 16 animais na região do Parque Nacional de Hustai Nuruu, na Mongólia. Fizeram-se entretanto outras reintroduções em pequenos núcleos, pelo que a população em liberdade na Mongólia ronda os 170 animais. Nem sempre foi fácil. Em 2005, apenas sobreviveram 11 dos 41 poldros nascidos. Os lobos, o frio e o vento estiveram entre as causas principais da sua morte.
Apesar das dificuldades, o Przewalski é considerado um caso emblemático de recuperação de um animal à beira da extinção.
A China e a Mongólia também avançaram com programas próprios de reintrodução, na década de 80. No caso chinês, o projecto iniciou-se precisamente no Centro de Propagação do Cavalo de Przewalski de Xinjiang, com animais recebidos do estrangeiro: depois de atingido um certo número em cativeiro, libertaram-se os primeiros 27 em 2001, no deserto de Dzungarian Gobi, que é o coração da Reserva Natural de Karamaile. “Só sobreviveram 19”, recorda Wang Zhenshan, dizendo que não se adaptaram logo muito bem às condições naturais. “Agora há 84 na natureza: 33 já nasceram no campo. É um sucesso.” Alguns dos nascidos no campo já pertencem à segunda geração. “Têm sido atacados por lobos, mas não é um grande problema”, diz Wang. “Os lobos preferem os rebanhos de ovelhas.”
No centro de Xinjiang, vivem actualmente 254 cavalos. Há cerca de cinco anos, receberam-se seis animais oriundos de jardins zoológicos europeus, para refrescar geneticamente a população e reduzir a consanguinidade.
Sobe-se ao topo do edifício principal e um terraço abre-se para a planície, pontuada apenas de tufos verdes. E os cavalos distribuem-se por vários parques.
Dois machos partilham um dos parques: é aqui que vão entrar os investigadores chegados de Portugal. Estão numa expedição científica por Xinjiang, para estudar os burros selvagens da Ásia e uma marmota que partilha a toca com uma ave (ver P2 de 24 de Junho e 8 de Julho de 2010). Como o centro fica no caminho, aproveitam para obter excrementos dos cavalos, destinados a estudos genéticos de evolução dos equídeos.
“Já repararam como são asseados? Não defecam no sítio onde têm a água”, chama a atenção Albano Beja Pereira. “Mas não se importam de defecar no sítio onde têm a comida, sobretudo porque os pequenos têm por hábito comer as fezes dos mais velhos. Quando nascem, não têm bactérias nos intestinos, por isso não são capazes de digerir plantas. Ao alimentarem-se das fezes dos mais velhos, ficam com a flora intestinal preparada para comer plantas”, continua o zootécnico do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio) da Universidade do Porto.
“Estava à espera que fossem mais baixinhos”, comenta Nuno Monteiro, biólogo também do Cibio.
É, no entanto, um cavalo de porte pequeno. Mede 1,2 a 1,3 metros de altura até ao garrote e tem 250 a 350 quilos. Salta à vista que a crina é diferente da dos cavalos a que estamos habituados, os domésticos: é curta e erecta, terminando entre as orelhas, como nas zebras, enquanto nos cavalos domésticos pende para um dos lados e cai na fronte.
A pelagem é castanha-alaranjada, com o focinho e o ventre esbranquiçados. Ao longo do dorso, têm uma lista. Nas patas também apresentam listas — ou zebruras, típicas da pelagem de cavalos primitivos, como no cavalo do Sorraia, a raça de cavalos portugueses mais ameaçada, com cerca de 200 indivíduos apenas. Mas enquanto os cavalos do Sorraia já resultam de um processo de domesticação — são os representantes domesticados do cavalo selvagem do Sul da Península Ibérica —, os Przewalski nunca terão sido domesticados.
Não há certeza absoluta disso, pois há muito para saber sobre a genética do Przewalski. Mas os estudos têm demonstrado que nunca foi domesticado, explica Albano Beja Pereira, que tem investigado este processo na vaca e no burro. “Como o Przewalski tinha uma grande distribuição, teria grande diversidade. Pode ter havido linhagens domesticadas e que agora fazem parte do cavalo doméstico”. Na altura em que começaram a fazer-se estudos genéticos já havia poucos Przewalski. “Ninguém garante que, para trás, não tenha sido domesticado.”
Qual é então o antepassado selvagem do cavalo doméstico, ou Equus caballus? Pensa-se que é um primo do Przewalski, chamado tarpã (Equus ferus gmelini). A sua distribuição ia desde a Rússia até à Península Ibérica. Extinguiu-se no final do século XIX no habitat natural. O último em cativeiro morreu em 1909, num jardim zoológico russo.
E quando chega o momento de Nuno Monteiro, Beja Pereira e o seu estudante de pós-doutoramento, o chinês Chen Shanyuan, entrarem no recinto com os dois cavalos, podem finalmente apanhar do chão o que os levou até ali. Guardam os excrementos em pequenos tubos de plástico. Indiferentes à presença dos homens, os dois machos continuam a comer palha e a andar pelo recinto.
Quatro exemplares no AlentejoMuito longe de Xinjiang, região que foi dos últimos redutos dos Przewalski na natureza, cabe a Francisco Beja fazer de cicerone na Coudelaria de Alter Real, a três passos da vila alentejana de Alter do Chão. De jipe, o coordenador do Departamento de Coudelarias da Fundação Alter Real conduz os recém-chegados pelo terreno irregular, aos solavancos, por entre as azinheiras.
Chega-se a um cercado de quatro hectares, com um barracão, a casa dos cavalos de Przewalski no Alentejo. Entra-se a pé no cercado.
Ali estão eles, bem ao fundo no barracão. Suzannah, uma égua de 17 anos, e dois machos, o Desejado, que é seu filho, nascido no ano passado, e o Brasão, deliciam-se com a palha deixada num comedouro.
Ainda nem são dez da manhã e o fulgor do Verão já aperta. Pacientemente, há que aguardar que terminem a refeição, que bebam água e decidam sair do barracão.
Suzannah faz parte do primeiro grupo de cavalos de Przewalski que veio para Portugal em Dezembro de 2001. Embora não tenham vindo de Xinjiang, o Alentejo passou a ter representantes dos cavalos que viveram naquela região chinesa.
Vindo do Jardim Zoológico de Marwell, no Sul de Inglaterra, o grupo inicial incluía, além de Suzannah, as fêmeas Mo e Virginia e o macho Sirano. Nestes oito anos em Portugal, nasceram dez crias, incluindo dois nados-mortos. Umas morreram depois ou foram levadas para Espanha.
Do grupo inicial, restam Suzannah e Sirano. A Mo e Virgínia, a mãe do Brasão, também morreram. E Sirano, em tempos o rei do cercado, vive agora sozinho noutro parque. Teve de ser isolado do Brasão, já com quatro anos, senão os dois iam lutar na presença de Suzannah.
A sua vinda fez-se ao abrigo do Programa Europeu de Reprodução destes cavalos, conduzido pela Associação Europeia de Jardins Zoológicos e Aquários, e de que a alemã Waltraut Zimmermann, do Zoo de Colónia, é a coordenadora. Ela tem gerido os Przewalski na Europa tendo em conta parâmetros demográficos e genéticos, para controlar a taxa de fecundidade e minimizar a consanguinidade, por exemplo.
Quando Maria do Mar Oom soube que seria possível propor a vinda de alguns Przewalski para Portugal ao abrigo do programa europeu, candidatou-se. A coudelaria de Alter do Chão seria um sítio óptimo para ter um núcleo destes cavalos, relata a bióloga. “Achei giro. Não havia estes animais em Portugal. Na Península Ibérica, só havia em Espanha.”
Qual não foi o seu espanto quando a coordenadora do programa visitou a coudelaria de Alter do Chão e aceitou o projecto, em que participa também o Jardim Zoológico de Lisboa.
Na altura, um dos objectivos era a procriação. Nos últimos tempos, Waltraut Zimmermann decidiu que em Portugal ficaria apenas um núcleo de machos, que seriam deslocados, sempre que necessário, para outros locais do programa. Encontrar instituições que acolham os machos é o mais complicado, porque os mais velhos não suportam outros machos, a partir de certa idade, na presença das éguas. Tornam-se agressivos, por isso é preciso encontrar instituições que os recebam.
“Infelizmente, de há dois anos para cá, as recomendações dadas pelo programa não têm sido seguidas [pela coudelaria]”, lamenta Maria do Mar Oom. Segundo essas recomendações, para se iniciar um núcleo só de machos, Suzannah deixaria de se reproduzir e seria trocada por um macho do Jardim Zoológico de Santillana, em Espanha.
Essa ideia, no entanto, é rejeitada por Francisco Beja. “Queremos continuar com machos e fêmeas”, admite. “Um núcleo de machos não tem interesse absolutamente nenhum.”
Os animais também deviam ter ficado longe dos cavalos domésticos na coudelaria, como o lusitano, o puro-sangue árabe ou o Sorraia, para que não os vissem nem lhes sentissem o cheiro. E devia ter sido construída uma zona confinada, onde pudessem ser tratados. Nada disto foi cumprido, diz Maria do Mar Oom.
Em princípio, os quatro Przewalski vão manter-se no Alentejo, só que, como as recomendações não têm sido respeitadas, a coordenadora deverá deixar de contar com eles no programa, explica a bióloga. “Isto correu mal. Tenho um desgosto de morte.”
Finalmente, o Brasão decide abandonar o barracão. Os intrusos despertam-lhe curiosidade. Pára a mirar-nos, olhos nos olhos. “Não vai passar dali”, sossega Francisco Beja. “Estes cinco metros são suficientes para mantermos o respeito por ele e ele por nós.”
Até Suzannah e o filho Desejado virem também passear, vale a sombra dos freixos no cercado, ao lado de um ribeiro agora seco. As moscas cirandam, zumbem. E eles ficam a desfrutar da sua planície.