Crítica: Crioulo contemporâneo

“Não importa ser caboverdiano ou português”, repete Avelino Chantre (bailarino, natural de S.Vicente) a Sócrates Napoleão (músico, natural da Brava) ao longo da peça. “Gosto de ser o que sou”. Um artista (aliás, um “artáiste”, parodia, em inglês). Um ser solto, que se alimenta da dor, da saudade, do sol. Caboverdiano ou português “dói na mesma, não adianta fugir”.

Mas é também o confronto étnico e cultural com Portugal o mote dos textos (eficazes e certeiros no timing interpretativo), música e movimento, criados pela dupla (nesta versão acompanhados pelo percussionista Kabum), sob a direcção de Clara Andermatt; as memórias, a experiência do amor, o contraste entre as suas ilhas de origem, esbatida pela cumplicidade tecida numa década partilhada na terra do outro, materializada no peso das longas rastas que aqui ambos deixaram crescer, como um pacto.

Nascer e crescer. Sair, estranhar, chorar e sorrir. Despedir-se e regressar. Personagens que representam mais do que elas mesmas: séculos de seca e de diáspora. Uma identidade atlântica e mestiça, nem exactamente africana, europeia ou ocidental. Uma conexão de afecto e estranheza que liga Cabo Verde a Portugal num imenso oceano, num peculiar modo de estar e de ser.

Void transita, ágil, entre os registos do canto, texto, voz, movimento e instrumentos musicais. Aqui reencontramos a conexão intrínseca entre música, sons e corpos que marcou o “ciclo caboverdiano” de Andermatt, entre Dançar Cabo Verde (1994) e Dandau (1999).

O que faz desta uma obra feliz são sobretudo os (muitos) momentos que desenvolvem imageticamente todo um universo evocativo: o uso cénico, plástico (e simbólico) do movimento das rastas, a vergastar estrepitosamente as guitarras, ou a ocultar e transfigurar os rostos; ou quando, no momento final, Chantre e Sócrates as emaranham, balanceando os corpos, irmanados e cúmplices. A reflexão sobre construir o equilíbrio pessoal, usando diferentes posições de um prego. A perseverança de uma criança, em Cabo Verde, que espera um mês pelo findar de uma lata de azeite para poder construir a sua guitarra, torna-se num aforismo filosófico. Sucedâneos dessas guitarras surgem em cena, e com elas se reproduz, em uníssono, a batida do coração de ambos. Void traz-nos ainda uma visão de Portugal, sob outro prisma: o frio do Inverno, a vida urbana e suburbana, veloz e cronometrada, a necessidade de se ser certeiro.

Alguns dos encadeamentos entre cenas pediriam, no entanto, algum desenvolvimento. E a figura de Kabum, enigmática, sombra ou contraponto da acção, careceria, porventura, de uma exploração dramatúrgica mais clara.

Trinta e cinco anos nos separam do fim do Império e o vasto território da crioulidade lusófona permanece, excepções à parte, por explorar. Não obstante, toda uma nova demografia tem marcado a nossa paisagem sonora, visual, olfactiva e humana - tão bem captada pelo olhar “externo” e arguto de Pina Bausch (Mazurka Fogo, 1998). O que é ser africano na Tuga (Portugal)? Ou nascer aqui e ter a pele escura? Ter a pele branca, mas as raízes, ou memórias, em Africa? Com Void Andermatt retoma a exploração de um trilho promissor, com esta balada sobre a condição mestiça da nossa contemporaneidade.

Luísa Roubaud
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