Mark Fisher escrevia há dois anos, num número da revista inglesa "Fact" que o Andy Warhol (1928-1987) das pinturas, dos retratos, das serigrafias, das caixas Brillo (1964), era um homem do século XX, o século em que a fama se confundia com a aristocracia e o fascínio pela pop era de uma inocência radical. Mais confortável no século XXI, prosseguia o crítico, viveria o Warhol de "Empire" (1964) ou "Chelsea Girls" (1966), que ligava a câmara para registar, indiscriminadamente, a passagem do tempo, a realidade, como um longo "live stream", sem comentários ou enredos. Ora, são estes dois Andy Warhols que encontramos em "Warhol TV", no Museu Colecção Berardo. Ou não coexistissem, nas imagens que a exposição mostra, o fascínio pelo brilho multicolor da fama e uma teimosa intrusa: a banalidade do quotidiano.
"Warhol TV" é uma exposição composta por sequências e excertos de programas de TV produzidos nos anos 80 pelo artista, e também por pequenos filmes realizados nos finais dos anos 60 e no início dos anos 70, como "Soap Opera" "Vivian´s Girls", Phoney" ou "Fight", onde já se observavam experiências com o formato da telenovela e os anúncios televisivos. Há também algumas curiosidades, como as aparições de Warhol num episódio de "Barco do Amor" (a famosa série que nos anos 80 também passou por Portugal), rubricas para o "Saturday Night Live" e um "spot" publicitário para a TDK. E, ainda, da reconhecida série "Screen Tests" (1964-1968), conjunto de retratos mudos, em 16 mm, de amigos, estrelas da Factory e outros artistas, um filme dedicado a Marcel Duchamp.
David, gostas de louros?
"Warhol TV" não mostra muitas obras inéditas. As séries de televisão integraram a antológica que em 2000 esteve no Museu de Serralves e "Screen Tests" passou em 2007 pela Cinemateca, no âmbito do Festival Temps d'Images. Para Judith Benhamou-Huet, a comissária da exposição, a televisão tem, no entanto, permanecido uma área invisível da obra do autor, pouco considerada até. E esconde uma história que merece ser contada mais ao pormenor.
"São poucos os que a conhecem profundamente. Nunca teve o apelo comercial da pintura ou da fotografia e tem ficado esquecida em Pittsburgh [a cidade natal de Warhol onde está situado o Andy Warhol Museum]", lamenta. A reconstituição do caso amoroso do artista com a televisão começou depois do desaparecimento em 2002 de Don Monroe, realizador dos programas de Warhol: ao ler alguns dos seus textos, a curadora (que também é jornalista) descobriu Vincent Fremont e Sue Etkin, os outros membros da equipa que esteve por trás das câmaras em "Fashion", um talk-show dedicado ao mundo da moda e emitido num canal temático de desporto, "Andy Warhol's TV", uma espécie de "reality-show" sobre o ambiente da Factory da época, e ainda "Andy Warhol's Fifteen Minutes", programa dos anos dourados da MTV.
O interesse do artista pela televisão esteve sempre distante de uma perspectiva crítica ou militante. Não realizou, como Richard Serra, uma denúncia do meio de comunicação de massas, não fez dele um suporte específico e divulgador de obras de arte, como Gerry Schum, nem defendeu publicamente as suas qualidades técnicas e didácticas, como Robert Whitman. Não, os motivos de Warhol nasciam do seu desconcertante, embora tocante, egocentrismo. "Ele desejava colocar todo o seu mundo na sua televisão. Vivia assustado com a morte e essa era uma forma de lhe fazer frente. Foi o que fez nas suas 'Times Capsules' [séries de arquivos erigidos entre as décadas de 60 e 80 e que incluem convites, ementas, bilhetes, fotografias, jornais, revistas, entre outros objectos], nos retratos que as pessoas lhe encomendavam ou nos 'Screen Tests'. Era uma forma de preservar o seu mundo. Quem entrava no estúdio, passava a entrar na sua televisão".
Egocentrismo talvez, mas egoísmo não. Sublinha Judith Benhamou-Huet: "Tinha uma grande curiosidade pelos outros. Vivia fascinado pelas mulheres, pelos homens, pelo quotidiano das pessoas, pelos outros artistas. É isso que quero mostrar". O quotidiano surge em vários programas, estendido em horas, grandes planos de objectos (meias coloridas, crachás, chapéus) e perguntas inusitadas. Numa entrevista, David Hockney disserta descontraidamente sobre a sua vida e obra, antes de ser interrompido por Warhol: "David, gostas de louros"? Noutro, a pintora Georgia O'Keefe acaba a falar do seu jardineiro de 70 anos, e, numa cena hoje dificilmente reproduzível com actores do mesmo peso mediático, Spielberg, Bianca Jagger e o próprio Warhol conversam numa cama. O tema é o cinema do primeiro: "As pessoas nos teus filmes são tão reais... mas também são muito bonitas e isso é muito bom", comenta o artista.
Um artista comercial
A estas personagens juntam-se outras (Cindy Sherman, Marc Jacobs, Jean-Michel Basquiat, Keith Haring ou Debbie Harry), que dão a ver não apenas o retrato de uma televisão, mas da movida cultural de Nova Iorque nos anos 80. No catálogo de "Warhol TV", porém, lêem-se testemunhos que não partilham do mesmo entusiasmo: são assinados por Gerard Malanga e Jonas Mekas e manifestam uma incompreensão face à aventura televisiva do antigo amigo; ousaríamos dizer que choram mesmo o fim do Andy Warhol da primeira Factory.
"Sim, este é um outro período, em que ele era menos considerado. Era um artista assumidamente comercial. Fazia muito dinheiro na publicidade. Em 1968, fez um anúncio para a companhia área Braniff, e, nos anos 80, outro para a Coca-Cola. Se lhe dessem dinheiro, fazia um anúncio para qualquer coisa. Queria ganhar muito dinheiro, fazer muitos retratos, fazer a máquina andar [foi próprio que um dia afirmou que queria ser uma máquina]. Mas, curiosamente, o único sítio onde não fez dinheiro foi a televisão".
Andy Warhol era, na verdade, um inepto diante das câmaras. Mau actor (esqueceu-se constantemente das suas falas no episódio de "Barco do Amor") e péssimo jornalista (as suas entrevistas irritavam a maioria dos espectadores), encontrou dificuldades no mundo da televisão. Viu propostas serem-lhe recusadas, outras recusou ele, antes de apanhar a boleia dos primeiros anos da televisão por cabo (com "Fashion" e "Andy Warhol's TV") e da MTV, e de garantir um espaço no "Saturday Night Live" (SNL), à custa do qual, durante semanas, para o público da televisão, o artista Andy Warhol dava lugar ao "Andy do SNL". Esse momento, diz a curadora, foi aquele em que esteve próximo de concretizar um dos seus desejos: desaparecer, transformar-se noutra coisa. Uma real imagem pop.
Ao contrário do seu cinema (cujo legado pode ser encontrado nos filmes de Pedro Costa, James Benning ou Gus Van Sant), a televisão de Warhol foi vista por pouca gente. Mas, fazendo ambos parte de uma mesma obra, é natural que partilhem traços comuns: "Ele disse uma vez que a sua televisão ideal seria uma câmara de vigilância à entrada de um edifício a registar tudo. Se olharmos para um filme como 'Empire', esse é um dos princípios. Creio que ele adivinhou mesmo algumas coisas, como a 'reality television'".
"Warhol TV" divide-se em núcleos ("Beleza e Sexo", "Talentos" ou "Artistas") e as sequências seleccionadas por Judith Benhamou-Huet são apresentada em projecções e televisores. O público vai ter cadeirões para ver tudo sem pressas e até ao fim. Confessa a curadora: "Se as pessoas se limitarem a ver rapidamente, não vão perceber nada. Pretendi com esta montagem que ficassem. E se isso não acontecer, então é porque falhei".
A televisão de Warhol, o homem da pop, tornada realidade, à disposição da geração do YouTube, dos canais temáticos, da Internet. Este são os verdadeiros 15 minutos da "Warhol TV".