Sónar: sob os céus de Barcelona

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O festival Sónar de Barcelona, dedicado às diversas músicas electrónicas e artes multimédia, já não tem segredos. Dezassete anos depois da primeira edição, é uma marca universal. Este ano, mais uma vez, recebeu cerca de 90 mil pessoas durante três dias, entre 17 e 19 de Junho. Um número regular, que poderia ser ampliado, mas a organização tem optado pela estabilização, mantendo o evento durante o dia no lotado Centro de Cultura Contemporânea e no museu adjacente - à noite decorre num complexo industrial gigante -, mesmo se a oferta supera a procura.

Crescer, neste caso, significava descaracterizar. A opção tem sido propagar. Este ano não foi apenas Corunha que recebeu uma extensão do festival. Foi a própria Barcelona a ser contemplada com algo único. Na primeira noite, uma instalação aparatosa de som e luz em forma de coluna, concebida pelo compositor japonês Ryoji Ikeda a partir dos jardins e do verde natural do Teatro Grego, iluminou os céus da cidade. Foi uma autêntica chuva de estrelas artificial, uma demonstração de sincronização de imagem e som que extravasou as fronteiras de um festival capaz de provocar efeitos colaterais.

Há inúmeros sintomas dessa contaminação. O mais óbvio decorre do facto da cidade acolher os agentes mais importantes do mundo das músicas electrónicas, das mais experimentais às mais lúdicas. Os que não fazem parte do cartaz do festival estão agendados para actuar nas inúmeras sessões nocturnas que acontecem nos diversos espaços da cidade durante os três dias. É um autêntico festival exterior ao festival que este ano levou à capital da Catalunha, entre muitos outros, Tiga, Mathias Aguayo, Boys Noize, Chicks On Speed, Ellen Allien, James Holden ou Kode9.

Um outro indicador da relevância do evento é o efeito multiplicador para a cena local. Havia sempre um elemento que faltava: música espanhola capaz de conquistar de forma inequívoca. Agora já há. Os Delorean deram um dos concertos mais celebrados e John Talabot foi responsável por uma das sessões DJ mais frenéticas. À sua volta existem outros projectos de Barcelona, que cresceram com o festival, garantindo que nos próximos tempos iremos ouvir falar muito mais do que o habitual de pop feita a partir de Espanha.

Quando o festival nasceu, na década de 90, as músicas electrónicas pareciam prenunciar o futuro. As revoluções por minuto sucediam-se. Hoje existe um efeito de diluição. Quase todas as músicas são electrónicas. Um pouco como os robôs. Há 20 anos fascinavam-nos. Ou então, temíamo-los, como quem receia o desconhecido. Hoje fazem parte de nós. Existe até um excesso de confiança na tecnologia. É isso que a exposição "(Back To) The Robots" reflecte, com artistas convidados a lançar um olhar retrospectivo sobre a nossa relação com os robôs.

A maior parte optou por obras, ou robôs, interactivos. A americana Lijin Aryananda concebeu um robô ("Mertz") de olhar cândido e voz infantil que interage com quem o interpela, enquanto o canadiano Max Dean criou uma cadeira ("Robotic chair") que se desmembra e se refaz sozinha. Pelo meio há até um "Humanoid lab" que promove competições entre robôs para gáudio dos humanos que assistem, entre a incredulidade e o sorriso, às disputas entre inteligências artificiais - do futebol ao sumo japonês, existem réplicas para todos os gostos. É uma exposição reveladora, pelo olhar nostálgico, sobre qualquer coisa que, até há pouco tempo, considerávamos ser o futuro.

Veteranos

O Sónar ganhou aura porque era ali que se decifravam linhas de futuro. Ainda é. Mas o vínculo com o passado também sempre esteve presente. E não apenas nas exposições ou nos filmes exibidos - como no documentário "Warp 20", de Lorenzo Fonda, que condensa a história dos 20 anos da editora de culto inglesa.

Todos os anos são apresentados alguns projectos veteranos, forma das novas gerações criarem uma relação com aquilo que foi feito lá atrás e de perceberem o presente. Na edição deste ano, os Roxy Music eram o grande destaque. Mas a sua prestação na última noite veio a revelar-se um equívoco. Esteticamente, o grupo pouco tem a ver com o espírito do festival.

Havia uma fatia considerável de público para os ver, mas a escolha de um repertório centrado em canções de combustão lenta, com longos solos de guitarra (Phil Manzanera) e de saxofone (Andy Mackay), dos quais Bryan Ferry muitas vezes se ausentava, não foram capazes de criar relação com o público. Em algumas canções como "Jealous guy", a voz de Ferry ainda sobressai, os telemóveis são substituídos pelos velhos isqueiros, mas a imagem que o grupo passa, nesta fase, é de anacronismo.

Parece existir o compromisso para que cada um dos membros do grupo brilhe um pouco, sem que o resultado final consiga ser entusiasmante. Melhor estiveram, na noite anterior, outros veteranos, os pioneiros do hip-hop Sugarhill Gang. Os americanos, extrovertidos e comunicativos, colocaram toda a gente a dançar, principalmente quando apresentaram canções que quase toda a gente já ouviu, como "Rapper's delight", de 1979.

Na tarde de sexta, os veteranos Cluster, lendas vivas do "krautrock" alemão dos anos 70 e sumidades no campo das electrónicas cósmicas não fizeram esquecer outras formações mais emblemáticas da mesma geração, como os Neu! ou os Can, apostando em soluções sonoras repetitivas e ambientes expansivos que resultaram fastidiosas na maior parte do tempo. 

Consagrados

No campo das formações consagradas, o grande destaque foi para o concerto dos LCD Soundsystem, que acabaram de lançar o terceiro álbum "This Is Happening". Por vezes, James Murphy enuncia que está cansado da vida mundana da pop, das viagens, das entrevistas, de ter de corresponder a algumas expectativas.

Mas depois existe o palco, a catarse, canções em crescendo que se diluem num mundo de emoções indizíveis que apenas a música parece apreender. Ao que parece, na Galiza, não foi grande coisa por causa do som. Em Barcelona não. Viu-se uma massa humana em descontrolo, rendida a uma máquina de debitar música vertiginosa e a um cantor que podia ser qualquer um de nós, capaz de fazer da exposição das fragilidades a sua maior força.

Tocaram canções do novo álbum (de "I can change" a "Pow wow") e mostraram roupagens novas para canções do passado recente (com destaque para a visão ainda mais "funky" de "Daft Punk is playing at my house"), mas o momento maior aconteceu com "All my friends", sucessão imparável de ritmos, guitarras trepidantes e o piano repetitivo da nova aquisição do colectivo (Gavin Russom), todos guiados pela voz de James Murphy, numa progressão imparável que levou ao delírio a mole humana.
No extremo oposto situaram-se os franceses Air, com um concerto demasiado morno e sem grandes novidades para quem os viu nos últimos tempos. O mesmo aplica-se ao islandês Jónsi, vocalista dos Sigur Rós, que apresentou o seu projecto a solo, e aos ingleses Hot Chip, apesar de terem obtido boa resposta do público, convertendo um dos palcos nocturnos numa pista de dança de pop electrónica divertida e saltitona.

Outra formação inglesa, os Chemical Brothers, não desiludiram. A fórmula, som electrónico poderoso e jogo cénico de grande impacto, continua a funcionar. Nem um álbum menos imediato que os anteriores - o sétimo, "Further", acabado de lançar - contraria estas características. A primeira metade foi dedicada ao novo disco, com sons ambientais a darem lugar a descargas de energia electrónica. Depois ouviram-se os êxitos de sempre com a eficácia do costume. Dentro da facção música-de-dança-para-estádio, apenas os franceses Daft Punk lhes fazem frente.

Antes, na noite de sábado, Matthew Herbert tinha apresentado o seu novo espectáculo, "One", baseado no disco que criou sozinho com o mesmo nome. Sem músicos ou cantores a acompanhá-lo, o inglês lançou-se para uma "performance" solitária, assumindo erros, improvisando em tempo real, mas sem grandes resultados. Foi pouco inteligível. Numa entrevista recente, dizia-nos que era um projecto muito difícil de transpor para palco. confirmou-se. 

Também sem grandes recursos em palco (um DJ e um cantor de apoio), o inglês Dizzee Rascal foi simplesmente electrizante. Nem todas as canções são imaculadas, algumas são mesmo de gosto duvidoso, mas o dinamismo, o fraseado vocal vertiginoso e as bases electrónicas selvagens - cada vez menos inspiradas no "grime" e mais num "house" pulsante e gorduroso - provocaram a festa. Entre o sentido artístico de Herbert e a linguagem e o descaramento de rua de Dizzie Rascal, levou a melhor o segundo.

Confirmações

O Sónar não é um acontecimento para espectadores passivos. Pede-se-lhes criatividade e que não tenham receio de se perder no enleio de escolhas simultâneas. É inevitável que existam perdas. Foi isso que aconteceu com Steve Ellison, ou seja Flying Lotus - que actuou ao mesmo tempo que os LCD Soundsystem -, de quem não vimos muito. Do que presenciámos ficou a ideia que a sua capacidade para organizar o caos de estilos, sons e texturas de que é feita a sua música não se resume aos discos, como no recente "Cosmogramma". Em palco fá-lo também e com intensidade.  

Não muito distante desta filosofia, encontra-se o americano Nosaj Thing, capaz de misturar com grande fluidez a actividade electrónica com ecos acústicos e estruturas próximas do hip-hop. Fá-lo sozinho em palco, recorrendo apenas a artefactos electrónicos, mas é tal a organicidade da sua função que mais parece um colectivo de músicos reunidos em sessão de improviso.

Também sozinho se apresenta o canadiano Richie Hawtin - desta vez, regressou com o pseudónimo Plastikman -, mas o som electrónico minimalista sombrio que difunde obtém sempre uma resposta electrificante da multidão.

Acompanhado por um quarteto de músicos apresentou-se Caribou, ou seja o canadiano Dan Snaith, capaz de criar momentos de electricidade quase rock, mas onde o predomínio das guitarras é substituído pela bateria e pelos teclados, transformando o som em qualquer coisa líquida e psicadélica.

O canadiano actuou no espaço programado pela Redbull Music Academy, o mesmo que recebeu a dupla Photonz, mais conhecidos internacionalmente do que em Portugal, que proporcionaram uma boa sessão dançante ao final do dia de sexta, mostrando que a sua electrónica está cada vez mais refinada.

Surpresas

Ao longo dos três dias não se vislumbraram propriamente surpresas estéticas. Mas sim tendências, estados de alma, linhas de continuidade. Percebeu-se, por exemplo, que alguns nomes da geração inglesa que cresceu a ouvir linguagens urbanas como o "grime" ou o "dubstep" vai dar que falar. Entre eles está Peter O' Grady, ou seja Joy Orbinson, capaz de criar temas hipnóticos (o mais conhecido é "Hyph mngo" do ano passado), mas de grande sugestão física, inspirando-se em matéria respigada ao "dubstep" ou ao "house" mais profundo, com fortes linhas de baixo, melodias acetinadas e motivos acústicos. 

Outro produtor que parte do "dubstep", mas que é capaz de ir mais além, é o inglês Zomby e os King Midas Sound, o projecto do inglês Kevin Martin (The Bug). O primeiro transformou a sujidade sombria do "dubstep" em abstracção electrónica numa sessão tardia, mas foram os segundos que conquistaram definitivamente o dia, com Kevin Martin coadjuvado pelos cantores Roger Robinson e Hitomi.

São aquilo que os Massive Attack já não se podem permitir ser, partindo do "dub", mas insuflando-lhe uma energia distorcida à beira do ruído. Em álbum (o magnífico "Waiting For You", do final do ano passado) até podem soar entorpecidos, mas em palco são vitais, canções vindas das entranhas da terra, uma massa disforme em forma de terramoto possuído por muita soul.

Outra tendência que não pára de fornecer motivos de interesse é o das músicas urbanas desqualificadas, provindas de todos os recantos do mundo. Os colombianos Bomba Estéreo dão a volta às sonoridades da "cumbia" - como os Buraka Som Sistema fizeram com o "kuduro", por exemplo - e transformam-na em massa efusiva. Não é nada de muito original, mas ao lado do previsível "electro-rock" dos ingleses New Young Pony Club, até parece que é.

Mas a festa maior, durante o dia, aconteceu com os Delorean, praticantes de pop electrónica eufórica, com movimentações rítmicas em crescendo e construções harmónicas de efeito imediato. Acabaram em palco com outro conterrâneo, John Talabot, na interpretação alucinada de "Sunshine", longa viagem dançante de mais de dez minutos, que deixou orgulhosos os naturais de Barcelona e rendidos os muitos estrangeiros - cerca de 60 por cento do público - presentes. A capital da Catalunha já tinha o festival de música electrónica mais icónico. Agora começa a ter também música. Nada acontece por acaso.

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