Teólogo polémico no interior do catolicismo, o suíço-alemão Hans Küng, 82 anos, mete-se, desta vez, com o islão. As Edições 70 acabam de publicar em Portugal a sua penúltima obra, "Islão - Passado, Presente e Futuro". É o último capítulo da trilogia sobre os três monoteísmos: "O Cristianismo - Essência e História" foi publicado em Portugal pelo Círculo de Leitores (2002), "Judaísmo - Entre Ontem e Hoje" só está disponível em outras línguas.
O teólogo católico tem sido muito crítico (apesar de antigo colega e amigo) do actual Papa Bento XVI. Há 30 anos, o Vaticano interditou Küng de ensinar teologia em nome da Igreja, mas o teólogo continua a ser padre católico.
Publicado no final de 2007, o livro não foge aos problemas actuais e faz a análise crítica das questões que hoje se colocam ao islão: a violência fundamentalista, a mulher, a exegese histórica do Alcorão, a secularização, a democracia. Mas reflecte também acerca da ignorância que, sobre o islão, existe no ocidente - um dos seus aspectos centrais. Incluindo em questões de actualidade, nas quais critica quer visões ocidentais quer argumentos de muçulmanos, como explica nesta entrevista ao Ípsilon, por telefone:
Essa é a razão pela qual eu escrevi este livro: que as pessoas que gostem de ser informadas encontrem respostas às suas perguntas. Verão que nem todas as coisas são igualmente importantes no islão. Por exemplo, a doutrina muçulmana não diz que todas as mesquitas têm de ter minarete mas, por outro lado, não há razão para a Suíça proibir minaretes, como aconteceu.
Devemos encontrar soluções. Porque é que os minaretes estão a perturbar tantas pessoas? A localização pode ser revista, pode chegar-se a acordo, no diálogo e compreensão mútua.
Não é boa ideia ter nas nossas cidades, por todo o lado, gritando o credo islâmico através de altifalantes. Em Medina, não havia altifalantes nem sequer havia minarete, no início. Há uma diferença em relação aos sinos que temos nos países europeus: os sinos não têm uma única mensagem, podem ser usados no caso de fogo, guerra ou paz. Não são uma profissão de fé que diz: "Só há um Deus e Maomé é o seu profeta".
Os próprios sinos foram suspensos durante a madrugada. Temos de perguntar se a religião é para o ser humano ou se o ser humano para a religião.
O véu não é o problema. Nos nossos países tínhamos véus. Coisa diferente é se se é professora ou funcionária pública e está completamente velada. Contradiz a dignidade da mulher. Não temos de seguir costumes que não foram introduzidos pelo profeta Maomé, mas eram das tribos árabes.
A ignorância que persiste tem outros responsáveis, com os quais Küng é muito crítico na obra: políticos e jornalistas só mostram um lado do islão, acusa. Há um problema mediático, é verdade, em relação ao islão. Os media tendem a desvalorizar aspectos da mesma realidade: é mais fácil repetir pela enésima vez imagens de manifestantes fanáticos do que mostrar experiências de apoio social a desfavorecidos ou declarações condenando o fundamentalismo, por exemplo.
Claro que, se há conflitos, apresentam-se, sobretudo na televisão, as pessoas de outras religiões de modo muito negativo. As pessoas no Cairo, em Meca ou na Turquia, por exemplo, querem viver em paz e não lutar. Na sua maioria, não querem conflitos nem são fanáticas. Mas a televisão está mais interessada em mostrar os fanáticos.
No livro, Küng não defende o islão e os muçulmanos a qualquer preço, mas não cede à crítica fácil: contesta duramente as propostas de "O Choque das Civilizações", de Samuel Huntington. Muitos elementos sobre o islão eram "obviamente desconhecidos" por Huntington, assegura. Por isso, este livro pretende "demolir pedra por pedra os muros de preconceitos", abrindo pontes de diálogo com os muçulmanos. Mesmo notando que o islão, tal como o cristianismo, sempre foi pluralista.
[Além do mais, o livro é muito bem escrito e acessível à compreensão do leitor médio; e está bem traduzido, o que dá gosto numa obra deste fôlego, ainda mais em matéria religiosa, escrevendo com rigor técnico palavras como xeque, em vez do "sheikh" inglês, ou islão, em vez de islamismo, para designar a religião.]
Essa é a principal virtude do livro: Hans Küng apresenta uma síntese histórica, teológica, política e social do percurso do islão, como dos seus contextos. Não é estranha, assim, a opção de, ao longo da obra, mostrar não apenas a história das diferentes correntes do islão, mas também a sua relação com o judaísmo e o cristianismo.
Apresento o que [as três religiões] têm em comum: a fé no Deus único de Abraão, entendido como criador misericordioso de todos os seres humanos. O monoteísmo é o terreno comum destas religiões, que têm um conceito de história que não é circular, mas progressivo. Há também figuras proféticas e mandamentos éticos comuns - crer em Deus tem várias consequências.
Para referir brevemente as diferenças: para os judeus, Israel entende-se como a terra e o povo de Deus. Para o cristianismo, Jesus Cristo é o messias e filho de Deus. Para os muçulmanos, o Alcorão é o livro e a palavra de Deus.
Não acredito na unidade das três religiões, mas acredito na paz entre elas. O que quer dizer que podemos aceitar as diferenças e respeitá-las, enfatizando que há muitas coisas em comum e que devemos excluir a intolerância e as guerras, trabalhando em conjunto de muitos modos.
Estamos a passar do paradigma moderno, em que as religiões estavam em confronto, para um paradigma pós-moderno, mais pacífico, de mútua compreensão, cooperação e integração social. O sincretismo não é solução.
Várias das questões com que o islão hoje se confronta têm relação directa com a sua origem. Küng faz esse percurso, descrevendo como, entre tensões, se define a primeira comunidade; o alargamento dos direitos da mulher; a constituição do islão como "religião de ética" e o reduzidíssimo número de "versículos jurídicos" do Alcorão (80, em 6666) - mesmo nestes casos, não são "regulamentações detalhadas com sanções penais", mas "exigências morais".
Küng explica também como a comunidade islâmica é o "verdadeiro núcleo em volta do qual se ergue o Estado" - ao contrário do cristianismo, que nasce exterior ao Estado ou mesmo opondo-se ou sendo perseguido por ele. Ou como o Alcorão passa de narrativa oral à fixação escrita, como a ideia da relação umbilical entre islão e guerra é um "estereótipo" ou, ainda, como o profeta se vê transformado em homem de Estado.
Maomé estava numa situação difícil: ele não tinha um Estado, havia uma série de problemas com as diferentes tribos em Medina, em conflito com Meca. Desde o princípio, ele funcionou não só como profeta mas também como homem de Estado, esteve envolvido em questões políticas e mesmo em batalhas. Embora se tenha envolvido no conflito com Meca, não executou todos os seus inimigos, trabalhou pela paz e foi capaz de reconciliar as pessoas.
Devemos tomar o islão literalmente: islão é submissão a Deus, tem a ver com "salam", que quer dizer paz, e há muitos muçulmanos hoje que trabalham intensamente pela paz. E que estão chocados com a atitude dos fanáticos que querem promover a tirania.
Na obra, Hans Küng apresenta seis paradigmas para ler a história do islão: o da comunidade, o império árabe, o da religião mundial, o ulemá-sufi, a modernização e o pós-moderno. Todos eles vão deixando em herança diferentes características, que permitem entender o islão multifacetado. O qual se confronta com outro problema já (quase) resolvido no cristianismo: o da exegese crítica do texto. Questão que, na conversa com o Ípsilon, Küng considera "crucial".
O Alcorão, elemento distintivo em relação a judeus e cristãos, é entendido como palavra de Deus, mas a sua fixação é progressiva. Inicialmente, "o profeta não deu quaisquer indicações para a edição de um livro". Pelo contrário: a fixação do texto sagrado serve, no início, uma estratégia de centralização política.
Ligadas umbilicalmente a esta questão, surgem a laicidade e a secularização. Questões importantes, considera Küng:
Sim. Mas não devemos ignorar a religião. Mesmo na Turquia, perceberam, depois da revolução de Kemal Atatürk, que a religião não pode ser perseguida ou ignorada. A Turquia mostra que o islão pode ser respeitado. O sistema político deve ser uma democracia, mas a democracia admite as religiões. Mesmo em França, estão a tentar hoje ter um sistema moderado de cooperação.
Uma leitura política e económica leva-nos a considerar os recursos e o poder. Mas a religião tem um papel importante, porque tem a ver com o nível mais profundo do coração humano e as mais profundas dimensões da sociedade humana.
As religiões podem influenciar conflitos políticos ou económicos. Podem ajudar a intensificar a luta contra outras religiões e outros países mas, especialmente após a II Guerra Mundial, quando entrámos no paradigma pós-moderno, vemos que as religiões podem trabalhar também pela paz.
Se tomar como exemplo o caso de Moçambique, a influência de pessoas de diferentes igrejas ajudou a estabelecer a paz num contexto difícil. A mesma coisa [se passou] com a intervenção de pessoas de diferentes igrejas na abolição do apartheid na África do Sul.
Enfim, esta obra - reunida às outras duas da trilogia de Küng - serve o propósito (paradoxalmente possibilitado pela condenação do Vaticano) a que o teólogo tem dedicado as três últimas décadas: o diálogo inter-religioso e o seu contributo para a busca de uma ética mundial. Hans Küng afirma-se convicto da possibilidade de um "triálogo" entre judeus, cristãos e muçulmanos. Mesmo se, pessoalmente, não deixou de ser cristão e católico, como confessa.
Se formos às origens, veremos que o judeo-cristianismo é muito semelhante ao judaísmo e também ao islão. É significativo que o Alcorão fale sempre de modo positivo sobre Jesus. Há muitos textos [no Alcorão] que elogiam Jesus. A única condição é que não faz dele Deus. Há muitas possibilidades de discutir isto positivamente.
Se eu tivesse nascido em Meca, provavelmente seria muçulmano. Analisei cuidadosamente as diferentes religiões nestes meus livros para ver quais são os aspectos positivos de cada religião. Tal como dizia o Concílio Vaticano II, posso hoje estar consciente de que as outras religiões são caminhos para a salvação e não para ir para o inferno.
Para mim, Jesus Cristo é um caminho de vida. Segui-lo é continuar a descobrir um sentido para a minha vida, o meu sofrimento e a minha luta. É um excelente modo de continuar, neste tempo, a encontrar a salvação.