O sangue que foi dádiva

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No erotismo adolescente do filme, o sangue tem duplo significado de perigo e desejo. Na cultura popular portuguesa, sangue é também vitalidade e virilidade. Desde 1991, dar sangue em Portugal é um feito "atlético". Com 20 doações, o dador tem direito a medalha cobreada, e com 60 leva o ouro. Face a estes e semelhantes apelos, não surpreende que o perfil do dador português seja homem entre os 30 e os 50 anos, e que ainda sejam controversas as propostas para acabar com a exclusão de dadores homossexuais e bissexuais.

Em contraste com outros países europeus, Portugal é auto-suficiente na provisão de sangue. O Instituto Português do Sangue tem conseguido aumentos nas recolhas, entre 2004 e 2008, um acréscimo de quase 40% em dádivas e dadores. Mas, no último trimestre de 2009, deu-se um aumento dos consumos médios de sangue, mais 200 unidades por dia. Em Fevereiro deste ano, quando a greve de enfermeiros suspendeu brevemente as recolhas de sangue nos hospitais, foi preciso recorrer a reservas e lançar (com sucesso) um apelo nos média.

Na ficção, como na campanha médica, o sangue é sobretudo dádiva: Bella tem que consentir a dentadinha, os dadores portugueses são voluntários e não remunerados. Para muitos economistas, este altruísmo é uma ideia suspeita. Afinal, o sangue tem valor comercial no mercado internacional. Afinal, o sangue tanto é uma dádiva entre indivíduos como um produto da tecnologia médica, que o separa em vários componentes para diversos usos. O Instituto Português do Sangue, quando monitora as necessidades dos hospitais, implementa um comum sistema de gestão de stocks. Os números na folha de cálculo tanto podiam ser unidades de plasma como laranjas. O sangue não tem nada de especial.

Nos EUA, durante décadas, a convenção ditava que o sangue era um bem comercial. As doações eram remuneradas e havia lojas para recolha, e muitas vezes era o sangue de excluídos sociais, desempregados e indigentes. Em Portugal, semelhante regime soaria a vampírico, e sem o romantismo do filme adolescente. Nós cremos na superioridade da dádiva, e na superioridade de quem oferece sem recompensa. É por isso que nos surpreende que a propagação por transfusão do vírus VIH tenha sido mais extensa em regimes de dádiva do que em regimes de recolha comercial de sangue. Isto porque era tido como moralmente errado questionar os generosos e altruístas doadores. Tudo isto mudou na última década. O sangue doado é hoje rigorosamente testado, como um produto. Por iniciativa coordenada na União Europeia, o regime de dádiva permanece connosco, mas, depois dos escândalos do passado, tem agora a versão comercial como modelo de gestão.

A experiência de outros países sugere que mais e melhores campanhas para recolha de dádivas podem não ser suficientes para o aumento de intervenções cirúrgicas, resultante do maior poder de compra e do envelhecimento das populações. A curiosa condição do actual regime é que para continuar depende pouco dos bons motivos dos doadores, ou do amor de Bella por Edward, ou do espírito atlético dos portugueses. O futuro do regime de dádiva só será mantido com melhorias na indústria do sangue: melhores métodos de separação de componentes e de teste, e cirurgias mais económicas em transfusão. O sangue perdeu a sua metafísica.

professor na Amesterdam School of Economics da Universidade de Amesterdão

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