Majestoso, o barco de Fausto vem de chegada

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Fausto apresentou sete canções que nunca antes tinham sido tocadas em palco Nuno Ferreira Santos

Mês e meio passados sobre um outro concerto de programa (o encerramento do ciclo Música e Revolução, a 1 de Maio, que encheu e fez vibrar a Casa da Música no Porto), Fausto Bordalo Dias respondeu com uma noite memorável de música e sonhos ao desafio que o CCB lhe lançou na “carta branca” de 2010: encenar, em estreia absoluta, a Trilogia que há três décadas ele vem construindo em torno das descobertas portuguesas.

Assim, o barco que ia de saída há 28 anos em “Por Este Rio Acima” vem agora de chegada, majestoso, sem fronteiras claras entre princípio e fim, até porque não há um fim claro nesta história, Fausto já o disse, as descobertas nunca acabam. Nem a guerra, nem o amor, nem a vã cobiça. E foi deste modo que, de sala cheia, o CCB ouviu ecoar entre as paredes do seu auditório sete canções que nunca antes tinham sido tocadas em palco mais uma, que na voz de Ana Moura já conquistou as graças do público: “E fomos pela água do rio”, “Velas e navios sobre as águas”, “E viemos nascidos do mar”, “Nos palmares das baías”, “Fascínio e sedução”, “À luz mais frágil das auroras”, “À sombra das ciladas”, todas na sequência que terão no futuro disco, serão as primeiras sete, e, num salto mais para a frente (será a décima), “Por altas serras de montanhas”.

Quem olhou o programa da sala, tinha lá tudo: a ideia do desafio, a lista dos músicos, o alinhamento do espectáculo e as letras das 22 canções apresentadas, bem como excertos dos livros de viagens que as inspiraram. Menos a música, claro. E foi esta que, ali posta a nu, desvendou a consistência e rigor desta nova proposta que há-de suceder às obras-primas absolutas “Por Este Rio Acima” (1982) e “Crónicas da Terra Ardente” (1994).

As terras são de África, os sons não. Porque a visão é a dos descobridores e o seu olhar só podia, assim, ser envolto em harmonias e ritmos portugueses. Por isso, ouvido o marulhar das águas em “off”, no início do espectáculo, na música de “E fomos pela água do rio”, uma bela balada, sente-se o encantamento que as palavras contêm: “a maré foi de rosas”, “o meu corpo suado/ embalado/ flutua e descansa”. Tal como se sente a sensualidade quente de “Fascínio e sedução”, sublinhada pela forma única como Fausto afaga as palavras: “Gira gira como um pião/ treme como a seda/ pela palma da mão”.

Do mesmo modo se sente o fragor da guerra no tropel rítmico, quase ofegante, de “À sombra das ciladas” (“estilhaçam ossos/ cuspindo sangue/ e vomitam almas penadas (…) imaculados sejam/ também/ e repousem em santa paz/ amén”). Ou a penosa mas inebriante viagem de “Por altas terras de montanhas”, sublinhada num troar dos adufes a que se juntou, por uma única vez em todo o espectáculo, o responsável pela direcção musical: “o meu querido amigo José Mário Branco”, como Fausto o apresentou.

O resto do espectáculo foi, já não de descoberta mas de reencontro. Mal se ouviram os tambores de “Ao som do mar e do vento”, vieram as palmas. Que se repetiriam muitas vezes, aos primeiros acordes de cada canção ou no final, reforçadas; ou ainda a marcar ritmos entranhados de tal modo na maneira de ser portuguesa que se torna irresistível para muita gente acompanhá-los, sejam os da chula ou os do corridinho, que Fausto tem feito questão de recuperar da forma mais nobre e contemporânea, sem concessões. Foi isso, aliás, que se verificou no “intervalo” instrumental, quando João Ferreira e Mário João Santos ensaiaram na percussão e bateria um “duelo” em improviso. A dada altura, as palmas cadenciadas encalharam no ritmo da chula e continuaram assim, por sugestão dos músicos, em “loop” físico, enquanto eles criavam por cima outras malhas rítmicas.

A fase “Por Este Rio Acima” foi, por fim, toda ela de exaltação colectiva, como seria de esperar. A começar no tema que dá título ao disco e a acabar n’“O barco vai de saída”, com uma ligeira alteração no alinhamento: “Olha o fado” antecedeu “Lembra-me um sonho lindo” e não o contrário, como estava escrito. Nada que interrompesse a fluente narrativa fílmica destas viagens, com tantos ecos de tantas eras. A insistência da plateia forçou um “encore”, único, já com muitas vozes a gritar títulos de canções, a tentar a sorte. Ouviu-se uma, contagiante como sempre: “Navegar, navegar”. Ela própria, neste contexto, também um programa. Porque a navegação continua e a história também. O barco ainda não atracou.

NOTA:

A recriar esta viagem em 22 canções estiveram no palco, com Fausto (voz e guitarra), músicos que têm dado o seu melhor em muitos espectáculos para que o som que ouvimos reproduza inesquecíveis travessias: João Maló (guitarra), Miguel Fevereiro (guitarra), Filipe Raposo (piano), Enzo d’Aversa (teclados, acordeão), Vitor Milhanas (baixo), João Ferreira (percussões) e Mário João Santos (bateria). Os arranjos e direcção musical do espectáculo foram feitos, a pedido de Fausto, por José Mário Branco, como resultado imediato da aventura musical que juntou ambos a Sérgio Godinho no projecto “Três Cantos” (gravado em CD e DVD), em Novembro de 2009.

Esclarecimento sobre o comentário do leitor "monk"

Caro leitor: eu não assisti ao concerto do Porto e tinha essa informação como de fonte segura. Publiquei-a, na verdade, sem a confirmar, o que não devia ter feito. A sua observação levou-me a retirá-la do texto, porque neste caso é preferível a omissão da referência (desnessária, no contexto) à persistência de um erro. Obrigado.


N.P.
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