“Mestre Saramago, aqui, aqui!" Cercado de gente que assim o chama, José Saramago sorri, tentando corresponder aos acenos, às perguntas, aos pedidos de autógrafos, mãos ocupadas a assinar o seu nome de Nobel da literatura de 1998 nos livros que lhe, vão dando e nas cópias do texto que acaba de ler, emocionado perante a Academia Sueca — o discurso em que se define como aprendiz desses "mestres de vida" que foram os seus avós e, "essas dezenas de personagens de romance e de teatro", de repente vivas, a desfilar ali.
"Obrigada mestre", justa mente assim lhe agradeceu Sture Allén, secretário permanente da Academia Sueca, mal Saramago terminou e a sala rompeu a aplaudi-lo, de pé. Demorou 45 minutos a comovente viagem de papel que o escritor partilhou com as centenas de pessoas que se juntaram às 17h30 (hora local) de ontem no salão de um velho palácio de Estocolmo, que já foi da Bolsa e agora é sede da Academia.
Lá fora era noite escura e nevava. Lá dentro um homem de 76 anos, em pé num pequeno estrado, rodeado de estátuas de gesso e lustres dourados, de frente para a mulher amada, Pilar, folheou uma a uma as 15 páginas de um discurso como a Academia Sueca não se lembra de ter ouvido, quase íntimo na memória da infância, quase mágico no súbito aparecimento de todas as suas personagens, como se a uma única, longa, história pertencessem, encadeadas, umas dando origem às outras, e ao que o autor foi sendo. Como se num fim de tarde de uma cidade escandinava precocemente anoitecida algo, dentro de Saramago e do que ele escreveu, se iluminasse para revelar. um sentido, um fio, um fim.
"Foi vivido." Erik Lorinroth, o mais antigo membro da Academia Sueca não encontra melhor palavra para resumir ao PÚBLICO o que acaba de ouvir, depois de 46 anos a escutar 46 prémios Nobel da Literatura, nesta mesma sala, "Foi maravilhoso. Cada discurso é muito diferente do outro, mas este baseou-se muito na própria vida do premiado.”
Expõe-se assim um romancista perante o mundo, a lembrar o tempo em que andava descalço na aldeia, "sempre descalço até aos 14 anos", em que ajudava o "avô Jerónimo nas suas andanças de pastor", e ia com a avó Josefa pela madrugada ambos "munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado", esse tempo em que "nas noites quentes de Verão, depois da ceia", seu avô dizia "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira" e iam, e "enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos" que o avô contava, "lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias" que e mantinham desperto.
José Saramago, na sua tribuna de Nobel: "Nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência mundo." Porque esse avô "deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras". E é neste momento que a voz do neto treme, tantos anos passados sobre o tempo da figueira, à beira das lágrimas numa sala solene que o escuta, em silêncio, suspensa, os 18 membros da Academia debruçados sobre a tradução sueca das palavras que ali estão a ser ditas, em português.
"Esteve quase a ir-se abaixo", comentará depois Zeferino Coelho, editor e amigo de Saramago há tempo bastante para não se enganar. Pilar del Rio, a espanhola que apareceu na vida do romancista português quando ele já "não podia esperar nada assim", confirma esse nó na garganta em que se embrulharam as palavras do Nobel, a meio da viagem entre a infância e os personagens. Pilar esteve sempre de olhos levantados para o marido, sem folhas brancas no colo porque as sabia de cor sempre de olhos levantados para o que fosse preciso. Para quando Saramago precisasse.
Gente capaz de dormir com porcosDa Azinhaga, da "gente paz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito" e que, como o avó Jerónimo, ao pressentir a morte, se despedia "das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas chorando porque sabia que as tornaria a ver", desse mundo partiu Saramago para contar as personagens dos livros que lhe deram o Nobel.
"Ao pintar os meus pais e meus avós com tintas de literatura(..) estava, sem o perceber a traçar o caminho por onde as personagens iriam fabricar trazer-me os materiais e as ferramentas que (...) acabariam por fazer de mim a pessoa em hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei."
Ei-las a desfilar, pela mão do autor, como bonecas russas umas contendo as outras, num descendo pela sala da Academia, desenhando aos poucos uma certa forma implicada (logo, política) de ver o mundo. H, o "medíocre pintor de retratos" ("Manual de Pintura e Caligrafia) que ensinou a Saramago "a honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustração" os seus próprios limites; "os homens e as mulheres do Alentejo" ("Levantado do Chão") que o escritor conheceu como gente "enganada por uma Igreja tão cúmplice como beneficiária do poder do Estado e dos terratenentes latifundiários, gente permanentemente vigiada pela polícia, gente, quantas e quantas vezes, vítima inocente das arbitrariedades de uma justiça falsa"; Luís Vaz de Camões ("Que Farei com Este Livro?"), "génio poético absoluto, o maior da nossa Literatura" que "regressa pobre da Índia onde muitos se iam para enriquecer", "soldado cego de um olho e golpeado na alma", "sedutor sem fortuna" que revelou a Saramago "a humildade orgulhosa" e "obstinada" de "querer saber para que irão servir amanhã os livros que andamos a escrever hoje"; Baltasar, Blimunda e Bartolomeu ("Memorial do Convento"), "três loucos portugueses do século XVIII, num tempo e num país onde florescem as superstições e as fogueiras da Inquisição" e onde habita "uma multidão de milhares e milhares de homens as mãos sujas e calosas, como corpo exausto".
E o cortejo prossegue com Ricardo Reis, "mestre de arte poética" que há-de terminar no princípio da "Jangada de Pedra", romance que foi "fruto imediato do ressentimento colectivo português pelos desdéns históricos da Europa". Aqui, o Nobel abre um parêntesis no seu discurso e corrige: "Fruto de um meu ressentimento pessoal...". E sublinha, perante a Academia, a metáfora da jangada de pedra: "Que a Europa, toda ela, deverá deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética."
Viva a literaturaA plateia ainda o ouvirá regressar, com ironia, à Igreja, no momento em que auto-define "O Evangelho segundo Jesus Cristo" como "herético ao não ser "mais uma lenda edificante de bem-aventurados e de deuses, mas a história de uns quantos seres humanos sujeitos a um poder contra o qual lutam, mas que não podem vencer." Sobre as crenças religiosas, "essas que com tanta facilidade levam os seres humanos a matar e a deixar-se matar" repetirá, de pé na sua tribuna de Estocolmo, três vezes a palavra “intolerância".
E assim chegamos à última página (a 12, nas cópias que a assistência tem na mão, a 15 no original do autor), em que Saramago, "o aprendiz" explica que no "Ensaio sobre a Cegueira" quis recordar "que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo". Depois, "como se tentasse exorcizar os monstros", pôs-se o aprendiz a escrever "a mais simples de todas as histórias", a que contém todos os nomes", "dos vivos e dos mortos", a que foi publicada meses antes de a Academia Sueca decidir que a este aprendiz chamaria mestre.
Sem uma única vez ter pronunciado a palavra "Nobel", José Saramago fica de pé, no fim do seu discurso, no meio das palmas. 0 secretário permanente da Academia diz em francês: "Obrigado mestre, obrigado laureado, viva a literatura, o romance, Saramago!" E ele embaraçado a sorrir, dois passos adiante no pequeno estrado, cruza os braços contra o peito, agradece à esquerda, à direita, avança um passo mais e estende a mão para Pilar. Assim ficam por um segundo, só os dois no meio da sala, antes de começar o cerco.
Texto publicado na edição de 8 de Dezembro de 1998