E Saramago chorou

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Entrega do Nobel em Dezembro de 1998 Manuel Moura/Lusa

Eram 13h em ponto em Estocolmo e meio-dia em Portugal quando a Real Academia Sueca anunciou aquilo que, seguindo a norma habitual da venerável instituição, estava há várias semanas prometido para "uma quinta-feira de Outubro", sem data certa: o nome do Nobel da Literatura 1998. 0 prémio foi para José Saramago, que se tornou no primeiro escritor de língua portuguesa a receber a distinção.

Por uma vez, as especulações que todos os anos precedem o anúncio do Nobel foram parcialmente cumpridas, pois José Saramago estava há vários anos em "lista de espera" para o prémio, a par de outro português, António Lobo Antunes, do britânico Salman Rushdie, do belga Hugo Claus, do mexicano Carlos Fuentes, do peruano Vargas Llosa, do brasileiro Jorge Amado ou do poeta chinês Bei Dao. 0 anúncio não constituiu, portanto, uma completa surpresa como aconteceu em 1997, quando o Nobel da Literatura foi atribuído ao italiano Dario Fo.

Embora fosse um "nobilizável" desde a década de 80, quando publicou os romances que lhe deram maior projecção — "Levantado do Chão" (1980), "Memorial do Convento" (1982) e "0 Ano da Morte de Ricardo Reis" (1984) —, ou talvez mesmo por isso, porque esperava há muito tempo por um Nobel que não vinha, Saramago teve uma surpresa. É como levar uma pancada na cabeça. Continuamos a andar e precisamos de nos recompor, antes de repensar nas coisas", explicou, quando lhe perguntaram qual a sua reacção.

E admitiu que quase perdera a esperança de ganhar o Nobel. "Não tinha quaisquer indicações sobre o que iria acontecer. Na verdade, ia a caminho de casa".

O escritor, de 76 anos, recebeu a notícia no aeroporto de Frankfurt, momentos antes de tomar um avião que, via Madrid, o levaria de regresso a casa, em Lanzarote nas ilhas Canárias. Estava acompanhado de um dos seus editores, José Oliveira, da Caminho. Ao saberem, os dois abraçaram-se a chorar.

"Preferia ter voltado para Espanha"

Um pouco mais tarde, já recomposto, Saramago estava de volta ao pavilhão português na Feira do Livro de Frankfurt para enfrentar uma multidão de jornalistas, a quem declarou, sorrindo, antes do início de uma conferência de imprensa: "Francamente, preferia ter voltado para Espanha". Os "flashes" dispararam e muitas das pessoas que trabalham no pavilhão português subiram para cima de cadeiras com uma rosa na mão.

Elegantemente vestido de cinzento, o escritor, a quem a agência Reuters chama "o grande veterano das letras portuguesas", dirigiu uma mensagem a todos os falantes de português: "Aceitem como vosso um prémio que tem que ser entregue a uma pessoa que o encara como pertencendo a todos". E acrescentou um gracejo: "Se me permitem, embora o prémio seja de todos, já que estamos nisto, eu fico com o dinheiro."

Este ano, o Nobel da Literatura é no valor de 7,6 milhões de coroas suecas, cerca de 166 mil contos, que serão entregues oficialmente, a 10 de Dezembro em Estocolmo.

"Uma pessoa retira vantagens do facto de ser mais visível e audível... Não tenho nada a acrescentar ao que tenho vindo a dizer há muito tempo, continuarei a dizê-las. Se houver motivos para dizer outras coisas, fá-lo-ei", declarou ainda Saramago.

Uma das primeiras pessoas a cumprimentá-lo foi o seu antigo editor na Alemanha, Michael Naumann, nomeado ministro alemão da Cultura do recém-eleito Governo social-democrata alemão. Naumann declarou aos jornalistas que o prémio "é muito importante para Portugal". "Têm que compreender que um país tão marginalizado pode tornar-se conhecido em todo o mundo na área da literatura, disse aos jornalistas, em Frankfurt.

Vaga de orgulho

As vendas dos livros de saramago, um escritor que alcançou o primeiro êxito literário já depois dos 60 anos, embora tivesse começado a escrever ainda jovem – publicou o primeiro livro “Terra do pecado” em 1947 –, vão disparar a partir de agora em todo o mundo.

Mas esse homem, que nasceu pobre, de uma família de agricultores, abandonou o liceu para tirar um curso de serralheiro mecânico, trabalhou como revisor, foi tradutor e jornalista, está longe de ser um desconhecido fora de Portugal: as suas obras encontram-se traduzidas em mais de 25 línguas e têm sido muito bem acolhidas pela crítica em termos internacionais.

Em Portugal, Saramago recebeu muitas outras distinções, como o Grande Pré+mio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE), com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, em 1991, e o Prémio Camões que distinguiu a sua carreira em 1995. “A atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago suscitou uma vaga de orgulho nacional.. Políticos e intelectuais saúdam este reconhecimento internacional no domínio cultural, após os êxitos que foram, este ano, a exposição de Lisboa e aentrada de Portyugal no núcleo duro da moeda única”, sublinha a AFP.

O Presidente da República, Jorge Sampaio, considerou o Nobel “a consagração definitiva do português” na pessoa de um “artesão e de um criador de uma obra universal”, “Todos nós, sejam quais forem as nossas convicções políticas, lhe agradecemos ter-nos dado hoje uma grande satisfação colectiva”.

O Conselho de Ministros também se congratulou com o “reconhecimento internacional de Portugal”.

Militante comunista desde a juventude, o escritor interveio activamente no processo revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril e dirigiu o “Diário de Notícias” durante o período marcado pela supremacia do PCP na vida portuguesa. Foi então acusado de ter procedido a uma série de “saneamentos” políticos.

Um dos seus livros, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, (1991), suscitou várias reacções negativas por parte dos sectores mais conservadores e católicos. A igreja não gostou que Saramago tivesse sido escolhido para o Nobel e “L’Osservatore Romano” manifesta-se contra a decisão da Academia Sueca: Saramago é, ideologicamente, um comunista inveterado”, afirma o diário do Vaticano.

O autor de “Memorial do Convento” é a quarta personalidade de língua portuguesa a ganhar um Nobel. Em 1996, o Bispo de Díli, D. Ximenes Belo, e Ramos Horta, porta-voz do líder da resistência timorense, Xanana Gusmão, foram distinguidos “ex-aequo” com o Nobel da Paz e, em 1949, Egas Moniz recebeu o Nobel da Medicina.

Texto publicado na edição de 9 de Outubro de 1998
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