As descobertas de Fausto pela terra dentro

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A obra de Fausto Bordalo Dias: são milhares de horas de dedicação e estudo intenso; de criação febril; de pausas sem tréguas ao pensamento Fernando Veludo/NFactos

Na sala de ensaio ainda se buscam sons. As teclas arriscam-nos, uma, duas vezes, num glissando que se vai aperfeiçoando. "Isto para mim é a onda, a entrada no rio e a vaga de calor que eles sentem", diz Fausto aos músicos. E à sala afluem Zurara, Cadamosto, Mendes Pinto, Diogo Gomes, é como se estivessem todos ali, longe e perto, na bruma que já se dissipou, a olhar o horizonte para lá das paredes pouco iluminadas. E a voz a retomar, enfim, o fio da história: "E fomos pela água do rio/ em busca daquela terra..."

Quem conhece a obra de Fausto Bordalo Dias, sabe ao que vem. São milhares de horas de dedicação e estudo intenso, de criação febril, de pausas sem tréguas ao pensamento. "Por Este Rio Acima", em 1982, abriu caminho pela porta grande. "Crónicas da Terra Ardente", em 1994, deu-lhe continuidade, somando-lhe novos momentos de génio. O terceiro tomo da Trilogia assoma agora pela primeira vez, em oito canções inéditas. Há mais, já feitas. Mas só estas serão dadas amanhã a conhecer, pela primeira vez, no palco do CCB, em Lisboa. Uma delas, apenas uma, já correu mundo noutra voz: a de Ana Moura. Fausto já a tinha escrito, cedeu-lha e ela gravou-a, com êxito. As outras descobrimo-las agora. E logo no início do espectáculo, que é por elas que começa. "E fomos pela água do rio", "Velas e navios sobre as águas", "E viemos nascidos do mar", "Nos palmares das baías", "Fascínio e sedução", "À luz mais frágil das auroras", "À sombra das ciladas", e, num salto mais para a frente no futuro disco, "Por altas terras de montanhas". Só depois virão temas dos discos anteriores, do fim para o princípio. Mas há um fim?

Fausto diz: "Não sigo a ordem dos relatos mas uma sequência cinematográfica da viagem, atravessando os relatos, colocando as canções correspondentes. Há naufrágios que foram à partida e outros que foram no regresso, como o do Sepúlveda." Em síntese, vê assim a trilogia: "O 'Por Este Rio Acima' fundamentalmente é a água, é o mar. O 'Crónicas' é a aproximação à terra. E este novo disco é a entrada, definitiva, pelo continente adentro." Mas não é simples memória, este trabalho de minúcia sobre um passado riquíssimo: "A história respira aqui, mas o que aconteceu no passado ainda acontece hoje. É essa a minha grande intenção, dizer que tudo isto é actual e se passa ainda à nossa frente."

Exemplos? "Quando falei sobre o Fernão Mendes Pinto transportei-o para os tempos actuais, porque a diáspora portuguesa continua. Aliás, incentivou-se agora: há portugueses que chegam a África pela primeira vez. No caso concreto da escravatura, ela continua a existir. No Sudão, na Arábia Saudita."

Viajar pelo sonho

Nesta viagem, várias coisas chamaram a atenção do compositor. "Uma foi o sistema da escravatura, já a funcionar na sua 'perfeição' plena. Os portugueses ficaram espantados quando viram pessoas a serem trocadas por animais." Outra foi o Preste João das Índias. "Era mítico, era uma lenda, e no entanto eles encontraram-no. Tinha práticas religiosas, cristãs, mas muito diferentes das que se praticavam. Não era um rei de palácios, era um rei nómada. Vivia um pouco em acampamentos que se iam montando, com a pompa que eles podiam aproveitar. O que era impressionante para os portugueses, e o Conde de Ficalho dá disso conta, é que as festas deles redundavam em grandes bacanais." E esse é outro ponto, o sexo."Uma das primeiras coisas que nos relatos transparecem, quando vêem as gentes das terras onde vão, são as mulheres.

Compreende-se. As viagens eram longas no mar e ali viam mulheres que eles, todos eles, diziam que eram lindíssimas e que se apresentavam de forma escultural, não estavam vestidas do pescoço aos pés."

De tal modo que raptaram uma. "Se houvesse marcianos e chegássemos a Marte, tentaríamos trazer um marciano para mostrar às pessoas." Eles fizeram o mesmo: "Não tendo ainda a noção do esclavagismo nem de que os escravos podiam ser importantes como força de trabalho, tentaram levar alguém para mostrarem como eram as pessoas que habitavam aquelas terras." Numa das novas canções, Fausto recria esse momento da história, descrevendo-o assim: "" que negra mais linda/ cingimos agora/ suavemente levada/ à luz mais frágil das auroras". "Não esquecendo a violência do acto, este tema tenta mostrar a forma cuidada como eles levam a pessoa, no caso uma mulher."

O novo disco levou-o, ainda, a uma velha paixão. "Entre os meus 10 e os meus 17/18 anos não perdoava nenhuma viagem entre Nova Lisboa [hoje Huambo] e Silva Porto [hoje Kuito] sem ir à casa do Silva Porto. Sabia-o um homem de barbas longas, um explorador que demorava seis meses a viajar do Bié para o Lobito, onde fazia o seu negócio, à base de pequeno comércio. Lembro-me bem da casa, porque me encantava: era uma casa europeia mas feita de adobe e colmo, uma cubata rectangular com uma paliçada, por causa das feras, e rodeada de laranjeiras, um símbolo de Portugal."

A recriar esta viagem em 22 canções estarão no palco, com Fausto (voz e guitarra), João Maló (guitarra), Miguel Fevereiro (guitarra), Filipe Raposo (piano), Enzo D'Aversa (teclados, acordeão), Vitor Milhanas (baixo) e Mário João Santos (bateria). Arranjos e direcção musical são de José Mário Branco, seu parceiro na aventura dos Três Cantos.

Da viagem, há ainda um ponto a reter: "Não vou chegar à parte da instalação de um sistema e administração colonial, nem quero. Até porque foi tardio. Eu privilegiei aqueles que viajaram pelo sonho, ainda que houvesse conflitos. Pelo sonho do conhecimento, do contacto com outros povos." Como Silva Porto, seu herói.

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