Crónica de um desaparecimento

Lucy, a cadela, desapareceu no Oregon. E Wendy, que estava a caminho do Alasca, vê-se sem carro e sem animal, as posses visíveis de uma existência tão fina como o papel que se o vento soprar mais forte ela vai desaparecer (e Wendy responde à invisibilidade social que parece condená-la com tamanha obsessão pelas suas pequenas coisas que ela própria já não consegue ver os outros.)

A Wendy (Michelle Williams e aquela sua agreste doçura que começa a ser um traço...) de "Wendy e Lucy" é uma progressão, em termos de alienação, das personagens de "Old Joy" (2006), anterior filme de Kelly Reichardt que esta semana também está disponível no mercado português - este em DVD, aquele em sala.

Os filmes são, ambos, crónicas de um desaparecimento: o da paisagem liberal americana, algo de mítico que o vento dos anos Bush arrasou (na entrevista que publicamos neste suplemento, a realizadora assume ter querido fixar um momento no tempo da América). E são, ambos, fantasmas de um cinema - como dizer: "cinema social"? - que há muito se extinguiu, com a sua geografia e a sua paisagem humana. Reichardt consegue fazer com que oiçamos esse som, o traço ainda possível e visível de algo, personagens e paisagens, que constituiu património cinematográfico americano, mesmo nos tempos da Hollywood clássica, e que já está ao longe, como o silvo dos comboios que se perdem na noite.

Não há como escutá-los, "Wendy e Lucy" e "Old Joy", filmes em que a realizadora, com uma abordagem próxima do documental, e correndo os riscos de um certo minimalismo (os riscos, isto é, a ameaça de desagragação), expõe actores e um fio de ficção ao Oregon, a paisagem predilecta do seu cúmplice nestas coisas, Jonathan Raymond, escritor de Portland - quer um quer outro filme são adaptados de contos de Raymond.Falar numa disponibilidade para a escuta - de algo que já não se consegue ver mas do qual conseguimos ainda ouvir o som - não é aqui uma figura de estilo.

A "banda sonora" de "Wendy e Lucy" é constituída pelo silvo dos comboios (tal como em "Old Joy" se insinua o som de um programa radiofónico...), e isso Reichardt utiliza como comentário - vamos escrever "silencioso", porque nada aqui grita redundância - à fragilidade social da sua personagem, à sua incapacidade de protagonizar o seu destino (logo, de ascender a protagonista do filme) e a um próprio cinema que já não existe. Eis a delicadeza, e a fragilidade, de "Wendy e Lucy": a sua natureza de filme-fantasma, também com dificuldade em existir.

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