Interpretar Mussolini? Depois do convite de Marco Bellocchio, Filippo Timi gastou muitas centenas de euros em DVDs com os discursos e a imagem do Duce, e percorreu os alfarrabistas e mercados de rua à procura de velhas fotos do ditador. Mas, apesar de sentir o peso da responsabilidade de interpretar uma figura histórica que "ainda está na memória de muitos italianos", sabia que tinha alguma sorte.
"A minha sorte foi interpretar o jovem Mussolini, antes de ele se tornar a figura que conhecemos. Foi o mais fácil, mas mesmo assim complicadíssimo", confessa ao Ipsílon numa conversa por telefone a partir de Itália, em italiano e pontuada pelo seu gaguejar (que desaparece quando está a representar).
Mais complicado ainda foi perceber que Marco Bellocchio queria que ele interpretasse não apenas Mussolini enquanto jovem, na altura em que este viveu uma história de amor com Ida Dalser, como que interpretasse o filho de Mussolini e Ida, Benito Albino Mussolini, também na juventude. "Foi particularmente complicado, sobretudo a cena em que faço do filho do Mussolini a interpretar o pai. Foi um salto acrobático de representação".
Uma coisa ficou definida logo nas primeiras conversas com Bellocchio - este não seria o Mussolini cheio de trejeitos, muito próximo de uma caricatura de si próprio, e que o filme depois nos mostra em imagens reais da época. "Era muito claro que devia procurar interpretar o Mussolini privado, o homem por quem Ida se apaixonou, e não a figura que aparecia em frente das multidões", explica Timi.
O actor acredita que esses gestos exagerados foram algo que o Duce desenvolveu por sentido do espectáculo. "Quando aparecia nas varandas, aquela gestualidade exasperada talvez se justificasse também pelo facto de o público estar distante dele. Julgo que foi inteligente, fazia-o para ser legível pelo público". Mas não era por aí que Timi queria ir. Era algo mais subtil - o retrato de um homem de espírito revolucionário (na primeira cena aparece a desafiar Deus perante uma assembleia de homens e o olhar apaixonado de Ida), e já então fascinado pelo poder. "É o homem que quando faz amor com Ida não a olha nos olhos, está já a pensar no momento em que será dono do mundo".
Ida ama-o para lá de tudo. Ama-o ao ponto de vender o seu salão de beleza para poder financiar a criação do Il Popolo d'Italia, o jornal com que Mussolini sonha depois de deixar o Avanti. Mas esta não é a mulher que convém ao futuro ditador. Timi explica a leitura que Bellochio faz da relação: "Mussolini não gostaria de ter ao seu lado uma mulher emancipada como Ida, que se tornava incómoda, que estava à frente do seu tempo, uma mulher independente, que estivera em Paris, que abrira o primeiro salão de beleza de Milão, que vendera tudo para o ajudar".
O que transforma a história numa tragédia é que, depois de rejeitada, depois de perceber que Mussolini a trocou por outra mulher (Rachele Guidi, com quem casou e de quem teve quatro filhos), Ida não desiste de lutar. "Não se conforma, faz cenas, grita em frente à multidão 'tu és o pai do meu filho, tens que nos reconhecer'. Tornou-se incómoda, ela e o filho". Se tivesse optado pelo silêncio talvez tivesse sobrevivido. Mas até ao fim ela insiste em repetir que é a "mulher de Mussolini e a mãe do seu filho primogénito". Nas últimas cartas que escreve ao Duce, do manicómio, avisa-o para que tenha cuidado porque "todo o mal" que fez voltar-se-á um dia contra ele.
Os palhaços
A história de Ida Dalser só é conhecida a partir de 2000 através de uma investigação do jornalista italiano Marco Zeni, que descobre o drama da mulher e do rapaz que Mussolini quis apagar da História e que acabaram, ambos, internados em hospitais psiquiátricos - ela morreu em 1937 e ele em 1942, de um estado de debilidade profunda. "Imagine-se", prossegue Timi, "uma criança a quem a mãe todos os dias recorda que ele é filho do Duce, que naqueles anos era o homem mais admirado, mais poderoso, era Deus. Depois a mãe é internada, ele muda três vezes de família, torna-se um desastre de identidade. Cresce, e como era parecido com o Duce e podia ser um perigo, dizem-lhe que a mãe morreu, o que era falso, e fecham-no num manicómio, onde morre. Não era louco, mas é levado à loucura."
Enquanto isso, o Duce mostra-se nas varandas a multidões fascinadas. "Havia mulheres que acreditavam que tinham ficado grávidas só porque ele olhara para elas. E a multidão gritava 'Tu és a Itália'". Timi quis perceber esse "extraordinário trabalho físico" do ditador, e para isso foi importante um texto intitulado "O Corpo do Duce", que "explica a personagem por esse lado físico". Outro texto fundamental foi "O Narcisismo". Aí que percebeu que "um ditador quando se olha no espelho não vê uma pessoa mas a imagem daquilo em que se quer tornar".
Quando o verdadeiro Mussolini surge no filme, a imagem é de um homem ridículo, com trejeitos de criança mimada e a tal gestualidade exagerada - que o filho irá imitar a pedido dos amigos, e que continuará a imitar, já mergulhado na loucura, no manicómio de Milão onde, segundo algumas teses, lhe dariam injecções de insulina, induzindo-lhe repetidamente o coma, até à morte.
Quando vê essas imagens antigas de multidões rendidas a um homem como Mussolini, Timi também se espanta: "Como é que todas aquelas pessoas puderam acreditar num palhaço daqueles?". Depois dá uma gargalhada. "Mas eu pessoalmente interrogo-me: e como é possível que hoje acreditemos noutros palhaços? E no entanto acreditamos."