O Terceiro Estado na cozinha

Se vivesse hoje, o francês Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826) seria olhado com desdém. O preconceito universal desautoriza o epicurismo dos homens de letras. Barthes diz mesmo que "não teria faltado quem pusesse no número das perversões esse gosto pela comida que ele defendia e ilustrava."

Publicada originalmente em dois volumes, a "Fisiologia do Gosto" (1825) de Brillat-Savarin foi mais tarde editada por Michel Guibert, que suprimiu repetições, "de maneira a oferecer ao leitor moderno um livro mais interessante e mais coerente." As supressões vêm assinaladas e, em muitos casos, substituídas por breves sínteses. O tratado mistura fisiologia com gastronomia, apontamentos sociológicos, "gossip" literário e histórico, anedotário mundano, etc. Escrita no fim da vida, a obra fixa a vasta experiência deste girondino moderado que estudou direito, química e medicina antes de, como deputado do Terceiro Estado, ter assento na Constituinte de 1789.

Não esquecer o tempo histórico que lhe coube: sobressaltos da Revolução Francesa na força da idade (com o Terror, viu-se obrigado a fugir do país em 1793; passou pela Suíça e pela Holanda antes de fixar-se em Nova Iorque), e a "reabilitação das alegrias terrenas [e] um sensualismo ligado ao sentido progressista da História" (cf. Barthes) no ocaso da vida. Brillat-Savarin foi gastrónomo, "maire" de Belley e, a partir de 1797, juiz da Cour de Cassation, a mais alta instância judicial francesa. Escreveu e publicou inúmeras obras de direito e economia política, mas foi a "Fisiologia do Gosto" que fez dele um autor de referência. A crítica mais conspícua põe o livro no patamar de importância das "Maximes" de La Rochefoucauld e dos "Caractères" de La Bruyère. Três pilares do "diktat" cultural francês...

A tradução portuguesa omite o subtítulo, "Méditations de Gastronomie Transcendante". Talvez não tenha sido má ideia. A fisiologia de Brillat-Savarin não se atém à gastronomia, mesmo se a moral em que assenta tem como pressuposto o princípio de que "a exactidão é a mais indispensável de todas as qualidades do cozinheiro."

Antes do prefácio, uma tábua de 20 apotegmas introduz o leitor no universo mental do autor. Dois exemplos: "Os animais alimentam-se, o homem come; só o homem de espírito sabe comer", e "A mesa é o único sítio onde ninguém se aborrece durante a primeira hora". Balzac considerava os aforismos brilhantes. Mas, para Baudelaire, não passavam de "tagarelices" pedantes e tolas.É fácil antecipar o juizo paternalista do leitor contemporâneo. À distância de 200 anos, muito daquilo que o autor fixou não escapa à "naïveté". Meditações sobre a digestão ("A extracção do quilo parece ser a verdadeira finalidade da digestão"), os sonhos ("Os sonhos são impressões unilaterais que chegam à alma sem a ajuda de objectos exteriores") ou a morte ("Se chegares à minha idade, verás que a morte é uma necessidade igual ao sono") correm o risco do "déjà vu" num tempo em que a ditadura da "vida saudável" conta com porta-vozes persuasivos e vasta imprensa especializada.

O capítulo dedicado à restauração é um dos mais interessantes. Em 1770, "depois dos dias gloriosos do reinado de Luís XIV, das libertinagens da regência e da prolongada tranquilidade do ministério do cardeal Fleury, eram escassíssimos os recursos que permitiam aos estrangeiros comer bem em Paris". Brillat-Savarin faz o ponto da situação, destacando os cozinheiros que fizeram de Paris uma cidade com pergaminhos na alta culinária: o influente Beauvilliers (íntimo do rei), Méot, Robert, Rose (mestre pasteleiro), Legacque, Véry (o mais caro de todos), Baleine, os irmãos Provençaux (especialistas em bacalhau), o célebre Henneveu, em cujo restaurante, o Cadran Bleu, havia quartos que serviam indiscriminadamente para encontros galantes e acerto de motins: ali foi decidida a prisão da família real, a 10 de Agosto de 1792.

Tudo razões que fazem o prazer da leitura de Brillat-Savarin. O leitor distraído confunde o nome do autor com o queijo homónimo? Não tem mal. Um dia chega lá.

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