A culpa é do pai. A culpa é de "Kramer contra Kramer".
Sobre o primeiro, servirá para explicar o facto de os cinéfilos Josh e Benny Safdie serem cine-filhos - entre a cinefilia e a biografia, isso fica(-lhes) bem.
O segundo, um filme de 1979 de Robert Benton, não é um título óbvio para se atirar num festival de cinema "independente" - porque tem estrelas, Dustin Hoffman e Meryl Streep, e porque tem fama de puxar pelos lenços dos espectadores (já agora: é tão magnificamente enxuto que as arestas magoam). Mas nisto do que é "indie" ou não, os irmãos Josh, 26 anos, e Benny, 24, não são politicamente correctos nem obedecem ao cliché - lá chegaremos e à agenda que essa palavra, "indie", comporta. Fiquemo-nos, para já, com o pai Safdie, com Dustin Hoffman e Meryl Streep, e com a forma como o cinema nasceu para Josh e Benny, os cineastas que aqui apresentamos. O seu filme, "Go Get Some Rosemary", história de Lenny, um pai divorciado que recria o mundo para os seus filhos e não os poupa à sua desordem, venceu o IndieLisboa.
Josh: O nosso pai iniciou-nos ao cinema. Ele fazia sempre de Dustin Hoffman o seu duplo nos filmes. Mostrou-nos "Kramer contra Kramer" quando tínhamos seis anos, e disse-nos: "este sou eu, o miúdo são vocês e a mãe dele é a vossa mãe".
(Parêntesis: o pai Safdie, na altura em que mostrou aos filhos a batalha judicial de Dustin Hoffman contra Meryl Streep pela custódia da criança, já se tinha separado da mãe Safdie)
Josh: É uma forma louca de apresentar o cinema a miúdos. Está-se a dizer que o cinema é um utensílio importante: um espelho da vida. Que não é apenas entretenimento. E ele continuou por essa via, comprando uma câmara, e filmando-nos constantemente. Já nos passou 300 horas de gravações... Há quatro anos começou a dar-nos as primeiras cassetes. É de loucos. Por exemplo, imagens de mim no dia dos meus anos a agarrar uma chávena e um "zoom" do meu pai sobre mim. O que é tão importante assim que levou o meu pai a filmar-me? Foi o início dessa coisa do cinema como reflexão. Estamos-lhe imensamente gratos. A personagem de Lenny [o pai de "Go Get Some Rosemary"] está também, de alguma maneira, a dar cinema aos filhos. Uma espécie de "cinema" espontâneo, ao vivo: vemos a realidade à medida que ela se desenrola. É desse tipo de cinema que gostamos. O estilo de vida que Lenny cria para os filhos é cinema para nós: o sentido de anarquia que lhes permite pensar "fora da caixa", a ideia de que tudo pode acontecer a qualquer momento. Caramba, é por isso que nós hoje filmamos!
Caramba, é por isso que "Go Get Some Rosemary" é assim!
É Lenny, o pai, um projeccionista (interpretado por um amigo dos Safdie, o também realizador Ronald Bronstein), um corredor de fundo das suas fantasias - é uma daquelas personagens cuja vertigem, para ser partilhável, exige muito do fôlego do espectador.
É, também, uma energia que não se extingue, antes pelo contrário, o que se pode tornar angustiante para quem está sentado na sala: Josh e Benny nunca deixam que as cenas, ou o lirismo, se instalem numa zona de conforto. Cortam sempre antes de tudo se fixar, o que abastece o espectador com uma reserva de excitação que ele não sabe onde gastar - sensação de desconforto, é verdade, que vai ser apaziguada, que vai ter consolo, como uma epifania final: sentimos, por isso temos a certeza, que "Go Get Some Rosemary" é um grande filme.
E ainda, o que não é menos deslumbrante: a forma como nos aparece Nova Iorque, cidade tão filmada que aqui, ou nas curtas dos dois realizadores (http://www.redbucketfilms.com/), parece nunca ter sido antes vista: algures entre a memória de um passado - como uma lembrança? - e a efervescência de um presente. Em que época se passa "Go Get Some Rosemary", Josh e Benny: hoje ou num filme, dos anos 70, de John Cassavetes?
Josh: Passa-se agora, hoje. Mas com as nossas memórias. Isso tem a ver com o facto de termos crescido em Nova Iorque, se calhar tem a ver com uma memória cinéfila ou até com um desejo de nos agarrarmos ao que resta de Nova Iorque. Nos anos 90 as autoridades tentaram diluir a personalidade da cidade. Temos, então, o desejo de nos agarrarmos ao que ficou. O nosso pai mudou-se para Manhattan, decidiu casar com a nossa mãe, divorciaram-se logo a seguir - era uma relação terrivel -, começou a namorar com uma mulher xunga de Queens, que não podia ser mais Nova Iorque. Era uma pessoa horrível mas não podia ser mais Nova Iorque, como se vivesse num filme dos anos 70. A nossa infância existe nessa Nova Iorque. É isso o que conhecemos.
Benny: A personagem do filme não tem um tempo dele próprio, não tem presente, não tem passado. Com muitos dos nossos filmes, somos atraídos por lugares intemporais de Nova Iorque. Se gostamos de um edifício ou de um lugar, vamos para lá filmar e isso está sempre ligado a algo que queremos recordar desse lugar. Ou seja: não estávamos a querer fazer um filme de época, mas é possível que tenhamos criado algo de intemporal.
Josh: O que falta a muitos filmes que se passam em Nova Iorque hoje é a espontaneidade de acontecer algo de imprevisível numa esquina. Como uma cidade quarteirão a quarteirão. O nosso cinema existe quarteirão a quarteirão, literalmente. Numa esquina filmamos um coisa, na esquina seguinte outra diferente. E geograficamente não nos importamos: por exemplo, numa cena podemos estar na esquina da Third Street e a cena seguinte pode ter lugar no Harlem.
Benny: E ao fazermos a ligação, estamos a dar uma versão da nossa Nova Iorque, que não sei se ainda é real ou se alguma vez foi real: numa esquina estamos nos anos 70, ao darmos a volta estamos nos anos 40...
Josh: E quanto à excitação da personagem, para nós esse lado maníaco é uma forma de ela evitar a depressão. Quando se pára para pensar na vida, isso pode ser deprimente. Se estivermos sempre em movimento, não deixaremos que isso aconteça. Do ponto de vista cinematográfico, é claro que Cassavetes é o padrinho do cinema indie americano. "Uma Mulher sob Influência" [Cassavetes, 1974] acrescentou algo às nossas vidas. Mas há outras enormes influências: Jean Vigo, por exemplo. Não tanto as personagens, mas o mundo em que elas vivem. É isso que domina os filmes, que controla os filmes, não há tempo para reflexão. Como se o filme tivesse vida própria, energia própria. Ha muitos realizadores que são melhores do que os seus próprios filmes, que ditam o estilo dos seus filmes. Isso, quanto a nós, mata os filmes.
A referência a Vigo, ao Vigo de "Zero em Comportamento", por exemplo, à energia anárquica, a algo de incontrolável que invade o filme, faz sentido quando se vê "Go get Some Rosemary". Neste filme, o mundo a que chamamos "adulto" está "off limits". Há aquele momento, por exemplo, em que um insecto gigante se materializa, como numa ficção científica paranóica dos anos 50 (já em "The Pleasure of Being Robbed", filme só de Benny Safdie, a personagem enfrentava quase amorosamente um grande urso branco), e contra isso não podemos nada. De não servem os nossos "filtros". O filme existe como quer (alguém já classificou esse um momento "cronenberguiano" num pedaço de Cassavetes, mas quem "está vivo!" não é o insecto, é o filme).
A propósito de energia, se pararmos um bocado para olhar para Josh e Benny, dá para nos perguntarmos quais as consequências da exposição a uma câmara de filmar ou de fotografar: são "performers" natos, transformam qualquer espaço num cenário de pantomima. Benny é um caso mais agudo - não é por acaso que, nas curtas dos irmãos, é ele o actor, definindo uma presença algures entre o "stand-up comedian" e o burlesco do mudo.
Josh: Benny é um performer. Eu posso interpretar variações de mim; Benny pode transformar-se em personagens. Desde miúdos que ele é o performer e eu o espectador da performance dele
(E Josh conta que quando embarcavam no avião para Lisboa, Benny subiu as escadas e acenou ao povo exactamente como um presidente; está em http://www.youtube.com/watch?v=gwoBXqMl0Yc)
Josh: Neste filme não podíamos ser o pai, não podíamos ser os dois filhos [que foram descobertos na rua; Josh achou o miúdo Frey igualzinho ao irmão Benny quando este tinha oito anos, e comoveu-se; chegaram aos pais das crianças, e então descobriam que Sage e Frey tinham o apelido Ranaldo, são filhos de Lee Ranaldo dos Sonic Youth]. Mas gosto da ideia dos realizadores como 'performers'. Têm de actuar para os seus actores. Por isso é que gostamos de não-actores: obrigam-nos a ser performers, a estimular as pessoas de forma performativa. Dirigir é um performance.
Como co-realizadores, são inseparáveis. Partilham as responsabilidades, metade/metade. Discutem mais na escrita, que não é só apenas, dizem, o argumento de uma história, é também o "script" da direcção deles. Os ensaios com os actores e a improvisação são forma de continuar o argumento ("de outra forma não podemos ditar a forma como a pessoa fala").
Estão tão ligados que ou se juntam para co-realizarem (trabalham neste momento num argumento sobre a indústria de diamantes em Nova Iorque, "Uncut Gems") ou se afastam para nenhum deles tocar no projecto do outro, que é sempre a tendência que têm. Integram um colectivo de cinco amigos, a Bucket Films, que decide os projectos a filmar pela sua "urgência". Explicam: todo o dinheiro recebido com "projectos comerciais serve apenas para pagar a renda do estúdio e equipamento"; os projectos pessoais são, assim, investimentos dos próprios, os outros membros do colectivo ajudam, não há questões monetárias na base das decisões do grupo. A propósito: o que é ser "indie", hoje?
Benny: É uma palavra pesada. Podemos fazer um filme indie por 100 milhões de dólares. Podemos dizer que "Avatar" é um filme independente, porque James Cameron passou-se dos carretos. Ou seja, esteve dez anos para fazer este filme, e segundo ele é exactamente aquilo que ele queria fazer - e daí talvez não, porque muitas pessoas meteram ali a mão. Mas é isso que ele quer que as pessoas pensem: que é um autor. Ora, há imensos filmes que têm a pose do filme independente mas estão apenas a aplicar as regras de um filme de Hollyood ou da televisão.
Josh: Especialmente na América: "oh, custou apenas 15 mil dólares, deve ser independente". Mas muitas vezes é uma versão barata de Hollywood. O cinema pessoal, para mim, é que é o independente. "Duplo Amor", de James Gray, tem estrelas de Hollywood, Gwyneth Paltrow e Joaquin Phoenix, mas é mais indie do que as porcarias que vejo em festivais de cinema em que os realizadores dizem "fiz este filme por apenas...". Independente significa independente dos modelos...
Benny: O cinema indie americano não é um barco comum para todas as pessoas. Só sentimos que estamos no mesmo barco de alguém quando respeitamos o seu trabalho.
Vamos ouvir falar de Josh e Benny Safdie, seguramente. Aqui mesmo, nestas páginas, quando "Go Get Some Rosemary", provavelmente com o novo título, "Daddy Longlegs", se estrear comercialmente, dia 15 de Julho (Midas...)