António Filipe Pimentel: "Admito mudar o Museu de Arte Antiga de local"

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"Não sou o homem da Regisconta, sou um gestor cultural" Enric Vives-Rubio

Assumiu o cargo no início de Março, depois de a ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, ter decidido substituir o anterior director, Paulo Henriques, que disse na altura que fora afastado por "não ter perfil de gestor". Pimentel, doutorado em História de Arte e antigo pró-reitor da Universidade de Coimbra, deixou então a direcção do Museu Grão Vasco, em Viseu, que assumira quatro meses antes e aceitou a do MNAA. Mas demarca-se de uma imagem de gestor: "Não sou o homem da Regisconta."

Vê o seu trabalho como gestão cultural, e isso significa criar uma estratégia para o MNAA. Quer fazer dele um desígnio nacional. E isto pode significar questionar tudo menos a herança central do museu. Admite que venha a ser transformado numa fundação. E que venha mesmo a deixar as Janelas Verdes e a instalar-se noutro espaço da cidade. O seu objectivo é que nenhum turista sinta que viu Lisboa, se não tiver visto o Museu de Arte Antiga.

A estratégia para o MNAA parece ter oscilado com os dois últimos directores. Primeiro com a direcção de Dalila Rodrigues, mais virada para uma maior visibilidade do museu, e depois com a de Paulo Henriques, mais centrada num trabalho interno, com as colecções. Como se situa neste contexto? É uma terceira via?

Cada um deles tinha uma visão estratégica focada em ângulos aparentemente opostos; contudo, ambos tinham um ponto em comum: a valorização do museu. Eu tendo a achar que a via certa é a intermédia. O museu é um espaço que tem de conciliar dois horizontes aparentemente opostos, mas que não passam de dois lados de uma moeda.

O lado reflexivo e da conservação é absolutamente fundamental, há um depósito sagrado de património que é confiado ao museu. No MNAA está uma parte muito substancial do que se considera que é património que define Portugal como projecto e na sua relação com o mundo. Isso traz responsabilidades do ponto de vista da investigação. Mas traz também responsabilidades enormes do ponto de vista da comunicação, porque um museu é um palco. Nasceu como o espaço de mobilização de uma comunidade a partir das obras que são expostas, e por trás das quais há sempre narrativas.

Somos escravos da imagem, o museu é um espaço de imagem. É preciso harmonizar as duas leituras: ter da preservação e do estudo uma visão estratégica e instrumental que não se esgota em si mesma. Deve ser mobilizada ao serviço dessa comunicação, que, contudo, não pode nunca sacrificá-la, nem pôr em causa os limites da sua segurança e salvaguarda.

Um museu não é a Torre do Tombo do património. Num arquivo, o que existe é um tesouro de informação que ali está guardado, conservado e é consultado. O nosso tem que ser exibido e permanentemente mostrado em relatos e narrativas.

Os dois directores anteriores gostariam provavelmente de ter conciliado essas duas perspectivas. Mas os recursos são limitados e obrigam a opções. Vai ter um reforço da sua equipa?

Não no sentido imediato. Mas o facto de poder trabalhar com um subdirector [José Alberto Seabra] é um reforço no plano técnico ainda que não no plano físico. Isso permite-me situar muito mais no domínio estratégico, das grandes linhas de orientação e programação, nas relações exteriores, no estabelecimento de parcerias, de elos de toda a espécie, porque um museu como este não pode estar isolado e as solicitações são permanentes.

O que está em cima da mesa é a ideia, que partiu da tutela, de que o próprio museu deve desenvolver um projecto reivindicativo de meios, seja os financeiros em função das necessidades que vamos tendo, sejam os recursos humanos.

A direcção bicéfala já está então em funcionamento?

Está a funcionar no terreno, embora não esteja ainda em termos formais, porque existem meandros jurídico-administrativos que ainda não estão resolvidos.

Quando se falou na possibilidade de uma direcção bicéfala para o MNAA, houve quem lembrasse que tinha havido, noutros países, experiências com esse modelo que correram mal.

Houve situações que deram resultados extraordinariamente negativos, porque partiam da noção de que as instituições de cultura deviam ser geridas como empresas. É um nonsense. A gestão de que precisam não é de uma gestão financeira - essa é uma inerência, não é nada de novo.

O que está em causa - e que é o que eu sei fazer, não sou de todo o homem da Regisconta - é gestão cultural, estratégica. Saber como afirmar a marca do MNAA, como criar para ela uma programação eficaz, que comunique bem, traga públicos, mas sempre em respeito à sua missão central. Isso pede imaginação, construção de desenhos eficazes, criação de sinergias, e essa tem que ser a função do director. O modelo não é uma águia com duas cabeças exactamente iguais. Há um director e um subdirector.

Já definiu projectos e linhas estratégicas?

Tenho já um diagnóstico amplo para perceber o equipamento que tenho nas mãos e começar a ter uma visão estratégica do que deverá ser o museu do futuro e para que ponto devemos caminhar.

Temos que pensar uma solução global para o MNAA. O Estado e a sociedade civil em partes iguais estão esquecidos do MNAA, esse é o grande problema. É preciso que ambos percebam que têm aqui um instrumento estratégico de afirmação que se ressente de um longo desinvestimento. A ampliação do museu foi nos anos 40, as grandes obras foram no início da década de 90. De lá para cá tem havido pequenos investimentos pontuais para a resolução de alguns problemas. Há que trabalhar em parceria num pensamento global para o MNAA.

Admite evoluir para um modelo de fundação?

Não compete ao museu ter uma palavra formal nesse sentido. Mas esse horizonte foi colocado desde a primeira hora. Penso que sim. O MNAA é claramente diferente, em vocação e em escala, dos outros museus. É lógico que possa ter acesso a um conjunto de condições de trabalho que lhe permitam realizar um outro trabalho de maior fôlego, ambição e responsabilidade. Essas condições passam por maior agilidade administrativa - se será a criação de uma fundação, não faço ideia. Não gosto de precipitar passos.

A possibilidade de ter acesso a receitas de bilheteira, da loja, alguma flexibilidade financeira, tudo isto deve ser analisado e ponderado. E pode ser feito em harmonia com os outros museus nacionais.

O que não faz sentido é que um país como Portugal tenha três ou quatro equipamentos de referência, em que o Estado é parceiro, que conseguem ter uma programação cultural intensa bem feita e bem sucedida - e não vale a pena dizer quais são, toda a gente sabe -, porque beneficiam de condições de trabalho com outra agilidade, e que o principal museu do Estado não possa ter uma programação e essa afirmação externa tão bem sucedida, porque não beneficia das mesmas condições.

Os museus dependem muito do mecenato. Mas os privados que são chamados a participar preferem muitas vezes ter uma palavra na própria gestão dos projectos.

A parceria público-privado não parte de um modelo rígido, pode ser modulada. Os mecenas esperam ter visibilidade das suas iniciativas, e o que temos que fazer é conseguir que estas estejam no topo da visibilidade a que podem aspirar. Mas acho duvidoso que a constituição de uma fundação num museu como o MNAA implique uma tutela de privados. Por muito liberais que sejamos, há partes do que é público que nunca se alienam. Há pontos intermédios que podem ser criados.

O museu é a sua relação com o exterior. Como é que o museu comunica, capta públicos, estimula a noção de que é um local de eterno retorno? Como se cria em Lisboa - e que é uma coisa que existe em Madrid ou em Paris mas não aqui - a ideia de que ninguém viu Lisboa, se não vir o MNAA? O turista médio que vá a Madrid tem a noção de que não viu Madrid se não for ao Prado. É preciso trabalhar isso. A partir do momento em que consigamos, teremos o melhor retorno que podemos dar a todo o tipo de mecenas.

Um exemplo concreto: a exposição Encompassing the Globe- Portugal e o Mundo nos Séculos XV e XVI. Esperava-se uma contribuição substancial do mecenato. Isso aconteceu?

Penso que não aconteceu de forma tão visível como se esperava, mas a gestão da Encompassing não pertence ao meu tempo e não devo opiniar sobre como essa questão foi conduzida entre o Ministério da Cultura e o museu. Mas foi uma exposição que trouxe uma enorme visibilidade ao museu - 72 mil visitantes.

Isso levanta a questão de saber se é melhor apostar em grandes exposições internacionais ou em exposições de menor dimensão em torno das colecções do museu.

Não creio que tenhamos que optar. O museu não pode abstrair-se da existência do grande público. Não cumpre a sua missão histórica se os portugueses não só não souberem que existe, como se não o tiverem frequentado nalguma circunstância da sua vida. Tal como, em termos internacionais, não cumprirá a sua função se não for capaz de se afirmar como um dos museus por onde as pessoas devem passar. As grandes exposições destinadas ao grande público são o caminho natural para fazer esse tipo de aproximação.

As exposições feitas a partir do espólio do museu e com menos escala não são menos importantes, e permitem servir de território demonstrativo desse outro trabalho de estudo e investigação que se faz no museu. Temos estado a preparar para um futuro próximo a criação de pequenas exposições que permitam passar para o exterior o trabalho que é feito sobre o espólio deste museu.

A ideia é que saiam do museu?

Porque não? Acho que sim. Evidentemente. Temos que respeitar o equipamento com a sua dignidade histórica. Mas tirando esse núcleo duro, que é relativamente reduzido mas não negociável, tudo o resto é um território em aberto que pode ter maior agilidade.

O museu tem possibilidade de fazer exposições que possam circular internacionalmente?

Acho que tem. A capacidade financeira é sempre o escolho em que tudo tropeça. Temos um património de referência e uma equipa historicamente aficionada, que move esta casa por alma e coração. Com isto não se consegue fazer nada com dignidade? Consegue-se. O meu desígnio é mostrar que temos aqui um dos grandes outdoors de Portugal, da afirmação portuguesa no mundo, de parceria internacional, se se quiser. É pouco arguto não investir aqui, porque tudo o que for investido aqui o museu devolverá em dobro ou em triplo. É pouco arguto asfixiá-lo.

Os orçamentos plurianuais, que o Ministério da Cultura quer levar à prática em alguns museus, nomeadamente o MNAA, ainda não estão a funcionar? Ainda não. Mas já se fala nisso ao nível do documento estratégico emanado pela tutela. E isso é vital para um museu como este. Tudo o que aqui for feito tem que ser feito com dignidade reflexiva. Isso obriga a programar sabendo que vamos ter três ou quatro anos de execução. Neste momento devíamos estar a trabalhar em 2012, ainda estamos em 2010. Confio que no decurso de um, dois anos será possível materializar esse desígnio.

Há muito que o Estado não tem um investimento estratégico neste museu, como tem tido, por exemplo, na renovação do resto da rede dos museus. É óbvio que tinha que fazer [o investimento na rede], mas agora a situação começa a ficar quase incompreensível.

A questão da sociedade civil é a mesma. Como é que se compreende que historicamente não tenha sido constituída uma task force financeira de grandes empresas para a constituição no MNAA de uma grande colecção concorrencial em termos internacionais? Estamos a faltar ao nosso dever de cidadania. É o nosso museu. É o grande museu de Portugal. Ninguém pensou: "Vamos criar um fundo para a aquisição de obras e daqui a 40 anos temos um museu como o Thyssen-Bornemisza [em Madrid]." Em pouquíssimos anos, a baronesa Thyssen constituiu uma colecção de referência de arte antiga em termos internacionais. Isso pode fazer-se.

A localização do museu também levanta uma série de problemas. Não há uma relação com a zona ribeirinha, não há lugar para estacionar. O que pensam fazer?

A situação tem que ser encarada. O museu tem fortíssimos constrangimentos de espaço, de edifício, problemas estruturais, muito complexos do ponto de vista técnico, e problemas evidentes de inserção na cidade. Vale a pena fazer do MNAA um grande projecto para Lisboa. E esse é o livro em branco sobre o qual deveremos trabalhar. Isso pode obrigar a decisões de fundo sobre o museu, às quais eu estaria perfeitamente aberto. Este museu, que vem de 1834, é um museu para o século XXI, XXII, XXIII e pode não ficar ancorado neste sítio.

Admite então mudar de sítio?

Admito perfeitamente. O único projecto que vale a pena é pensar o museu como um todo. Tudo o resto serão panaceias que nunca irão resolver os problemas estruturais. À escala em que estamos a trabalhar, o que quer que se faça é sempre extremamente oneroso, não se faz nada com pouco dinheiro aqui a nível estrutural. Vale a pena continuar a investir num edifício em que quando se compõe de um lado se cria um problema noutro sítio? Ou pensamos a sério numa solução que seja articulada, que sirva o museu e a cidade?
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