"Viagem ao Meio", a exposição de Alexandre Estrela na Galeria Zé dos Bois (ZDB), em Lisboa, é - o título insinua-o - o resultado de uma série de pesquisas e trabalhos de campo. Nada de documentos ou abordagens documentais. Produzido pela ZDB e iniciado há dois anos em diversas residências, o projecto assinala a continuação de uma obra e de "temas" que nela que se repetem: a percepção como criadora de equívocos e encantamentos; a natureza concreta das imagens ou as propriedades escultóricas da imagem em movimento. Acontece que, desta vez, Estrela saiu do atelier. Partiu em viagem.
O primeiro destino foi a Ilha de S. Miguel nos Açores. Aqui definiram-se os eixos da investigação e uma primeira abordagem à peça que deu o nome a esta individual. Seguiu-se uma residência na República Checa, no âmbito da qual se apresentaram novos trabalhos na Meet Factory em Praga, e uma viagem a Timor. O trabalho de campo concluiu-se com novo regresso a São Miguel e uma estadia de 15 dias numa cabana nas imediações do vulcão da Lagoa das Setes Cidades, na ilha açoriana.
Algumas referências teóricas/literárias balizaram o princípio da expedição. A primeira esteve no livro "Keep the River on Your Right", de Tobias Schneebaum, pintor americano que nos anos 60 abandonou Nova Iorque para viver com tribos peruanas, partilhando dos seus costumes.
A intenção de Estrela era encontrar na natureza um novo sistema, uma nova maneira de pensar; numa comparação imaginativa, reunir o gesto dos pintores da Escola de Barbizon (sair do atelier) ao olhar de Terrence Malick em "A Barreira Invisível". Entretanto, apareceu "Songlines" de Bruce Chatwin ("O Canto Nómada", na edição da Quetzal), livro onde o viajante e autor inglês revela que na cultura aborígene a linguagem começou numa canção e que são as canções que dão existência ao mundo - cada paisagem, cada rocha é uma canção. Na sociedade timorense, baseada na transmissão de conhecimento por via oral, Estrela encontrou tradições próximas: as indicações dos percursos pedestres são transmitidas pelos seus pares através de paisagens cantadas e as palavras ritmadas promovem visualmente a existência física das coisas. Entretanto, o que seria um exercício na paisagem transformou-se numa imersão da paisagem. Conta: "Depois de um périplo pela montanha e as casas sagradas timorenses, descobri que os populações consideram as suas aldeias o centro do mundo, que para elas Timor é o centro da humanidade. E essa ideia geocêntrica interessou-me muito".
De regresso aos Açores, influenciado por esta cosmogonia, no seguimento da "repérage" realizada antes, Estrela (com o curador Natxo Checa) voltou à Lagoa para concluir "Viagem ao Meio". O lugar escolhido foi o Túnel das Sete Cidades, um canal construído nos anos 30 para drenar as águas da lagoa e que perfura as paredes do vulcão (que tem a maior cratera do Atlântico). As diferenças térmicas, a luz, a ideia de meio/centro, bem como de viagem determinaram o processo. O artista, o curador e assistentes pegaram num quilómetro e setecentos metros de filme, desenrolaram a bobina do centro para uma das pontas e depois voltaram a enrolar. Em simultâneo com a exposição da fita, toda a travessia foi registada em vídeo, pelo que os dois suportes acabam por se cruzar e sobrepor. Vemos a fita escura, queimada, antes de ganhar alvura (protegida pelo escuro do túnel), enquanto a imagem do vídeo vai caindo num negro cerrado. "Interessou-me a ideia de profanação. Do vulcão e do meio fílmico. Temos ali um ecrã que recebe a imagem de dois meios. A do vídeo vai numa direcção e continua. A do filme, porque a fita só foi esticada até ao meio, volta para trás. O que une tudo é o som".
"Viagem ao meio" tem um lado cerimonial. Obriga o espectador a fazer a travessia, a seguir o filme e a película. Solicita disponibilidade, como as apresentações de cinema e vídeo experimental de Oporto, projecto que Estrela dirige há três anos (perto do Miradouro de Santa Catarina, em Lisboa). Esqueçam os "screenings" e outras massificações do vídeo. "As coisas para serem vistas precisam de espaço, de contexto e a bancada [que faz parte da peça "Viagem ao Meio"] é aí fundamental. Põe-te ao lado, perspectiva-te o espaço, coloca-te de frente para os dispositivos. Vês a criação de uma imagem única, em tempo real, dada por dois sistemas".
O encontro com as imagens
Se em "Viagem ao Meio" o espectador é colocado diante da contaminação do filme pelo vídeo (os dois cruzam-se, sobrepõem-se) e o centro (do túnel do vulcão) é um centro performativo (afinal seguimos o filme, a película até ao interior), em "Le Moiret", obra produzida durante uma residência na Bretanha, a imagem desdobra-se para criar um centro espacial. Um pequeno vídeo projecta, sobre um vidro, sombras de folhas agitadas pelo vento e a imagem materializa-se (ganha estrutura física) num canto da parede. O efeito óptico é "precioso", táctil e abriga, segundo Estrela, um novelo de interrogações: "O que é o centro da imagem? É o centro convencional da imagem da representação? É o centro da imagem do ecrã? O centro da matéria que compõe esse ecrã? Essa era reflexão que me interessava". E o som, que lugar tem na estrutura dessa imagem? "Anima as folhas. Oferece uma percepção do vento. Com este trabalho procurava filmar o que não é filmável"
A reflexão sobre as propriedades físicas das imagens (em movimento) renova-se na prática deste artista.
"Sim, interessa-me trabalhar a fisicalidade da imagem, a possibilidade de uma imagem ser concreta, existir, de ter atributos físicos". "Flauta", através de um processo estereoscópico, cria essa percepção. Duas imagens alternadas parecem produzir o som grave do vento que se escuta através de um buraco feito no ecrã. Mas o efeito é ilusório, assim como o lado físico da imagem.
Tal como as possibilidades da escultura, as potencialidades da percepção continuam a fascinar Estrela. Vejam "A teia", plano fixo de uma teia pendurada num bambu. Ou será um falso plano fixo? Ou uma imagem em movimento encontrada em Timor?
"Entendo percepção como o mediador entre o sujeito e a realidade e interessa-me trabalhá-la não com conceitos, mas com intuição perceptivas", esclarece. "A imagem não deixa de ser uma ressonância, vibra a uma determinada frequência. Se entrares dentro dessa frequência, se a quebrares e modelares, pode acontecer um efeito encantatório. Mas não me interessa a mecânica da visão, e sim a natureza concreta da memória e da imagem".
Como nomear, então, a imagem da teia? Uma imagem "encontrada"? E nesse caso, não estaremos já distantes da estratégia de apropriação que marcou obras seminais como "Cross sharing (2000) e "Banned in the Uk" (2000) ou, já na última década, "Intermission" (2006)?
"A apropriação de imagens foi transferida para a apropriação do acaso, mas continuo a encontrar-me com imagens que já existem. Como acontece no 'Songlines' do Chatwin. E continuo num processo laboratorial. Procuro nelas uma espécie de revelação interna. Isolo-as e ponho-as em cultura. Tanto num sistema celular como num sistema cultural".
Este tem sido o método e o fazer de Estrela. Tempo para recordar "Cross sharing": "O que fiz foi buscar dois filmes ["Soylent Green", de Richard Fleischer, e "Far from the Madding Crowd", de John Schlesinger] que partilham o mesmo plano [um plano de ovelhas num prado, adquirido num banco de imagens], e uni-os. Juntei-os nesse plano que é uma imagem de produção e, ao mesmo tempo, um plano central nas narrativas. O que acontece no "Cross sharing" é a união por meio de metanarrativas. Aproprio-me da apropriação, pois essa imagem não pertencia originalmente aos dois filmes".