Manuel Mozos: o irmão mais velho

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Que "Ruínas" (o filme de Manuel Mozos) se estreie em conjunto com "Canção de Amor e Saúde" (o filme de João Nicolau) será um facto ditado, em primeiro lugar, por questões de conveniência logística - os dois filmes têm origem na mesma produtora, a O Som e a Fúria. Mas, depois desse facto muito concreto, a porta fica aberta para um simbolismo interessante, que mais não é do que a confirmação de outro facto: a espécie de relação privilegiada entre Mozos (que nasceu em 1959 e começou a filmar no final dos anos 80) e um conjunto de cineastas bastante mais novos do que ele, nascidos já nos anos 70. Como que um apadrinhamento e uma adopção, mútuos e simultâneos. É verdade que a maior parte desses cineastas gravita em torno da O Som e a Fúria - Mozos participou em mais do que um filme de Miguel Gomes, e montou "Tony", a estreia na realização de Bruno Lourenço, também uma produção O Som e a Fúria recentemente distribuida em sala - tornando natural que também ele tenha chegado a essa produtora ("Ruínas" é o primeiro filme de Mozos com O Som e a Fúria). Mas não só: vimo-lo, por exemplo, no "Veneno Cura" de Raquel Freire e, coincidência ou não, João Salaviza, o jovem realizador do premiado "Arena", foi actor no "...Quando Troveja" que Mozos dirigiu em 1999.


Que afinidades existem entre o cinema de uns e de outros, o que é que - no que toca aos filmes - está na origem desta aproximação, desta transformação de Manuel Mozos numa espécie de "irmão mais velho" de cineastas nascidos dez, quinze, vinte anos depois dele? Convém registar um dado curioso que talvez tenha alguma coisa a ver com isto, e que se liga aos modos (e aos tempos) da recepção dos filmes de toda este gente. A carreira de Mozos, se bem que iniciada em finais da década de 80, foi fértil em impasses e azares tremendos. Do seu primeiro filme - "Um Passo, Outro Passo e Depois", de 1989 - despareceram os materiais originais, e só se pode vê-lo hoje em transcrições video que danificam bastante as qualidades da imagem e do som. "Xavier", que teria sido o seu filme seguinte, encontrou problemas de produção que atrasaram significativamente a sua conclusão e a sua estreia - rodado em 1992, "Xavier" só chegou a uma versão "acabada" e definitiva já no século XXI. De certa maneira, a obra de Mozos só "arrancou", em termos de regularidade e visibilidade, numa data relativamente recente: 1999 e "...Quando Troveja". O que vale por dizer que, em termos de recepção, se tivesse criado um efeito de contemporaneidade entre os filmes de um e de outros, e a "descoberta" de Mozos fosse, de facto, simultânea à descoberta de Gomes, Sandro Aguilar, João Nicolau...


Fazer cinema em Portugal já é difícil mesmo sem ter em conta a indiferença do público em geral, as eventuais injustiças da crítica e a hostilidade de "opinion makers" enfatuados. O percurso de Mozos faz dele um "sobrevivente", e um exemplo vivo de obstinação perante as dificuldades, um exemplo de "resiliência" - e seguramente isto é algo que os mais jovens vêem e admiram nele. Por outro lado, pelos filmes de Manuel Mozos passa ainda a sombra de um cinema português (o dos anos 80) que viveu - visto de hoje, com inusitada felicidade - a encruzilhada entre a afirmação de uma identidade e a fidelidade "familiar" a toda aquela geração de cineastas (os do Cinema Novo, os que vieram logo a seguir) que praticamente construiu a própria noção de "cinema português". O cinema português, e a noção de "cinema português", mudaram bastante na última década e meia, mas ainda há alguma coisa que responde a esse cinema português dos anos 70 e dos anos 80. Quando se vê um filme como "Canção de Amor e Saúde" percebe-se bem que, sendo já "outra coisa", é ainda um filme que tem algo a dever (e que sabe que tem algo a dever) a João César Monteiro, por exemplo. Os "filhos" já não serão "filhos" mas reconhecem os "pais", e mesmo que seja para partir para outros territórios esse reconhecimento mais ou menos próximo, mais ou menos remoto, ainda está nos filmes.

Nessa medida a presença de Manuel Mozos no cinema português actual tem uma função simbólica crucial: ele é uma espécie de testemunha de algo que deixou de ser o que noutro tempo foi, mas que desse tempo traz ainda alguma coisa para transmitir e para depositar junto dos que vieram - dos que nasceram - depois dele. Alguém dirá que "Ruínas", obra sobre lugares abandonados e memórias adormecidas, não é justamente um filme sobre isto mesmo?

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