Na sua primeira obra, "Rapace" (2006) - Grande Prémio do 14º Festival de Vila do Conde -, João Nicolau mostrava-nos um recém-licenciado com pouca vontade de enfrentar as responsabilidades. O filme passava-se no bairro de Telheiras, em Lisboa, e a personagem preferia refugiar-se em códigos de fantasia e comunicação nos seus encontros. Nos locais que filmou, entre a casa e a rua, Nicolau abria portas para a intervenção do imaginário no quotidiano do protagonista, juntando, por vezes no mesmo plano, elementos realistas a uma fantasia regressiva, infantil.
Na nova curta, "Canção de Amor e Saúde", que acompanha a exibição de "Ruínas", Nicolau passa a uma nova cidade: Porto. Aí, Norberto Lobo (músico e amigo do realizador) é João, empregado de uma loja de chaves num centro comercial. Os seus dias, temperados pela realidade de um espaço comercial vazio no centro da cidade, acabam por se dividir entre a procura de um novo amor e a tentativa de compreensão do seu mistério. Após alguns encontros (reais ou sonhados), João conhecerá Marta do Monte, que lhe entregará a chave que irá abrir a porta do seu imaginário.
Ao contrário de "Rapace", em que a personagem tenta fugir a regras de um comportamento adulto, João Nicolau concentrou-se, em "Canção de Amor e Saúde", na passagem da inocência para a assunção dos sentimentos e, porventura, na possibilidade de uma vida adulta.
"'Rapace' é um filme fundado na impossibilidade do encontro amoroso. 'Canção de Amor e Saúde' é o contrário: acaba com um beijo. O João é um jovem que já trabalha. E, no entanto, há sempre um reduto de inocência, que depois possibilita o amor. O Hugo, no 'Rapace', acabou os estudos, está num momento de pausa. Mas é curioso ver que esses redutos mais íntimos não têm a ver com o amor ou com o trabalho, mas com resignação ou, outras vezes, com o querer romper com o mundo que nos rodeia. O que me interessa é o momento em que isso pode ser transformado".
Em "Canção de Amor e Saúde" essa transformação surge quando João abre a porta da loja com a chave de Marta do Monte. No plano seguinte, os dois encontram-se num jardim, um local aberto para viverem dentro de uma fábula. Algo só possível graças à fantasia que o cinema de Nicolau concede aos seus lugares, num jogo permanente entre o físico filmado e o imaginário que este sugere.
"Quando faço esses planos em que vejo o Norberto a entrar na cave do pai, e quando a Marta lhe dá a chave e eles passam para o jardim, o que me interessou, também, foi tirar o lado metafórico. Ali, há o lado físico, são mesmo portas que se abrem. É por isso que os 'décors' são tão importantes: conferem essa materialidade que não está nas personagens, que são quase seres fantasiosos".
O jardim é o da Fundação de Serralves ("se pudesse, filmava um filme só com pássaros"), onde as personagens de repente falam uma nova língua: o francês. "Uma semana antes da rodagem, o Canal+ comunicou que para apoiar o filme ele teria de ser falado, em 50 por cento, em francês. Essa dificuldade acabou por jogar melhor com o tempo dos planos, e com a lógica de mudança de décor, de língua e de relação".
Méliès e Lumière
A quebra das normas nos filmes de João Nicolau (com uma primeira longa, "A Espada e a Rosa", para breve), tanto em termos espaciais como narrativos, é uma das marcas mais importantes de um conjunto de filmes que têm chegado ao cinema português: marcados por um fantasioso imaginário, que irrompe pelo quotidiano dos protagonistas sem aviso nem fricção, pontuados por uma liberdade musical e um interesse pelas possibilidades da sua representação.
E há colaborações recorrentes entre colegas. Miguel Gomes, realizador de "A Cara que Mereces" (2004) e "Aquele Querido Mês de Agosto" (2009), tem contado com João Nicolau para vários papéis nos seus filmes. Na curta de Gomes "Cântico das Criaturas" (2006), Nicolau foi actor e montador, tendo mais tarde sido actor em "A Cara que Mereces", onde as personagens cantam sem aviso e recusam viver segundo a realidade da vida adulta. Participam em jogos tirados da infância, testando até que ponto poderão continuar a viver na fábula que criaram. O cinema, aqui, surge ainda como plataforma privilegiada para o imaginário.
"O cinema serve para isso", diz Miguel Gomes. "Esta dupla vertente do Méliès e do Lumière, uma que tem a ver com o registo do real e outra que tem a ver com a criação de mundos paralelos ao nosso, está na origem do cinema desde o início".
"Aos doze anos", continua, "li 'As Mil e Uma Noites', um livro sobre a necessidade e o prazer de escutar histórias, onde fazê-lo é literalmente questão de vida ou de morte. Dentro de uma história vem outra, e dentro dessa história vem outra, até à vertigem... O cinema, para mim, vem também das 'Mil e Uma Noites'. Tem essa possibilidade de conseguirmos voltar a olhar para o mundo de maneira mais livre: há um lado libertário, a evocação da infância serve para isso, para as coisas poderem voltar a ser possíveis. Existe uma ligação muito forte entre sonho, infância e cinema, as regras são muito mais flexíveis e livres do que no universo normativo onde vivemos".
Bruno Lourenço, assistente de realização nos filmes de Miguel Gomes (conheceram-se na mesma turma da escola de cinema), lançou recentemente "Tony" nas salas, a sua primeira curta (onde João Nicolau também participa como actor). É centrada num jovem que imita o seu ídolo, o cantor Tony de Matos, e o realizador sublinha a importância da infância no filme: "Mas tudo isso tem a ver com o cinema, é como ir ver um filme. Há sempre um lado infantil em cada espectador quando se deixa levar pelo filme. Isso sempre fez parte do imaginário cinematográfico".
Quem canta, os males espanta
Grande parte de "Tony" é passado nesse clube onde imitadores de figuras conhecidas da música portuguesa se juntam para recriarem as interpretações das vidas com que sonham. "Aquele Querido Mês de Agosto", de Miguel Gomes, oferecia um regresso a um local de férias, em Arganil, para o retrato de uma paixão adolescente de Verão no cenário musical e festivo dos verdadeiros habitantes da região onde o filme foi rodado. Em cada palco os músicos dão aos espectadores e a quem os filma a interpretação dos seus sentimentos e das histórias de amor criadas nesse local.
"A primeira ideia para o filme foi tentar construir um melodrama a partir daquele universo musical físico, das festas de aldeia com aquelas canções", diz Gomes. Como quem chega a um novo local e observa a realidade por entre as notas escritas pelos protagonistas, tirando daí o seu cinema. A canção surge, então, como uma oportunidade, um lugar onde as personagens podem partilhar o que sentem. "Isso vem do meu gosto pela música, de sentir que faz parte da minha vida escutar canções e de achar que há espaço para isso no cinema". Interessa-lhe "perceber até que ponto uma canção consegue sintetizar o universo mental e emocional de uma personagem num momento".
Para João Nicolau, o cinema e a música estão também próximos na sua vida. Nicolau integra o grupo München, a banda escreve os momentos musicais dos seus filmes. "Numa lógica de prazer que procuro manter para orientar a minha actividade, aquilo que gosto de ver num filme é a experiência do tempo. A música é a associação de acontecimentos sonoros no tempo e é também utilizada em 'Canção de Amor e Saúde' de maneiras diversas, para o tempo correr mais rápido ou para se criar uma bolha, como na sequência vermelha do filme, que o dilata".
"Há um momento no 'Cara que Mereces", diz, por seu lado, Miguel Gomes, "em que as personagens começam a entoar a melodia de uma canção que se ouve num filme, 'Rio Bravo' [Howard Hawks]. É o momento em que decidem tomar uma série de soporíferos e entrar para dentro de um quarto onde vive um monstro. A canção surge no 'Rio Bravo' no momento em que os protagonistas se metem na prisão com o bandido e esperam que, a qualquer momento, entre o gangue dele para os matar a todos. E cantam para não ter medo, tal como as minhas personagens cantam para não ter medo".
Recordações de João César
A liberdade destes filmes traz recordações do cinema português: personagens que recusam a responsabilidade das normas, preferindo o mundo fantasioso que os protege. São recordações de uma casa de outras cores, recordações de João César Monteiro.
De todos, João Nicolau é aquele a quem tem sido detectada uma colagem mais forte ao cineasta. Foi o montador de "Vai-e-Vem" (2003), último filme de Monteiro, e trabalhou, dois anos depois, na organização do catálogo dedica do ao realizador editado pela Cinemateca Portuguesa. Reconhece a importância de Monteiro no seu percurso, sem ver, contudo, uma herança: "Muitas vezes sou apresentado como discípulo, o que não faz sentido. Claro que é um realizador importantíssimo. É alguém que nos diz muito pela liberdade que trouxe aos filmes. No meu caso pelos diálogos, no caso do Miguel [Gomes] pelo olhar mais documental".
Miguel Gomes salienta a importância de "Recordações da Casa Amarela" (1989): "A minha relação com o cinema português passou muito por esse filme, que vi quando tinha 16 ou 17 anos, e que me impressionou pelo facto de se perceber que era possível filmar Lisboa, a minha cidade, daquela maneira, que era possível articular um filme com aquela liberdade. Foi marcante".
Talvez a homenagem mais directa esteja em "Tony" de Bruno Lourenço: o plano final evoca o plano de abertura desse filme de Monteiro, com a entrada na Lisboa de Alfama pelas águas do Tejo. Bruno Lourenço confirma: "Sinto Lisboa ali, no plano do barco. É uma homenagem ao Tony de Matos, por causa daquela música maravilhosa de que gosto muito, e ao César Monteiro, a pessoa que melhor filmou Lisboa".
No entanto, dizem todos, trata-se menos de um legado, do que de manter um olhar atento ao que os rodeia. João Nicolau: "Há outros realizadores contemporâneos do João César Monteiro, o Luc Moullet, o [Otar] Iosseliani, o [Aki] Kaurismäki, que recusam e ao mesmo tempo interagem com o que os rodeia; o próprio Godard. Esta relação de estar ou não estar com o mundo é necessária à construção de um filme: esse desfasamento, esse lado fora da lei, é o que faz existir uma tensão qualquer sobre a personagem no filme".
Que lugar para uma geração
E todos estes filmes se juntam ainda num ponto: são produzidos pela O Som e a Fúria, produtora criada em 1998 e gerida por Luís Urbano e Sandro Aguilar. "Há uma série de comunicações e colaborações de trabalho", reconhece Sandro, também realizador. "Nunca houve um espírito de movimento, cada um é muito individualista e quer o seu próprio universo. Os filmes são muito diferentes. Ao mesmo tempo, há quem diga que se reconhece o que sai de O Som e a Fúria. Isso não tem a ver com a especificidade da linguagem, tem a ver com um mesmo desejo de afirmar um universo individual e procurar que os filmes traduzam uma forma de ver o cinema. O que há de comum é que raramente são filmes de rotina".
"Todos eles têm uma coisa comum", continua Luís Urbano, "uma lógica de liberdade criativa, que não é de restrição na produção mas de parceria, sendo que na maior parte dos projectos estamos na sua génese, do início até ao fim".
Daí a empatia criada no seio deste grupo, baseada no respeito pela liberdade criativa de cada um dos intervenientes. Daí, também, a necessidade de um pacto entre o espectador e o imaginário que lhe é oferecido. Nada de novo no cinema, mas algo muito discutido actualmente em Portugal. "Os filmes que fazemos, e é essa a força do cinema português", enfatiza Luís Urbano, "não tentam conduzir o espectador. Um filme como 'Rapace' ou 'Aquele Querido Mês de Agosto', que foi muito bem sucedido comercialmente, apresentam um imaginário, um conjunto de imagens e sons, um esboço de narrativa, mas procuram estar sempre cheios de espaços abertos para serem preenchidos pelo espectador. E neste momento é muito complicado quando existe uma cultura audiovisual que tem um pavor desse espaço vazio".