Lawrence Weiner sem metáforas

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Lawrence Weiner (Bronx, 1942) tem uma voz grave, gutural. As palavras saem gravadas no ar, solenes, pausadas e ganham - passe o exagero - materialidade. O tom, sem beliscar a seriedade com que defende a sua obra, é despretensioso. E ajuda a rematar as respostas com perguntas ("quem sabe?") ou com o advérbio da dúvida ("talvez"). Arriscaríamos dizer que semelhante temperamento atravessa as frases que colou na Galeria Cristina Guerra a propósito de "Poignant Adaptation". Coisas que se relacionam entre si e com as pessoas, sem prescrições ou autoritarismos.

É a quarta exposição do americano na galeria lisboeta e a quinta em Portugal (participou com Julião Sarmento e John Baldessari na exposição "Drift", em 2004 no CCB). Figura incontornável das vanguardas que agitaram a arte nos anos 60, hoje inscrito na respectiva historiografia, permanece um artista activo, contemporâneo, com o mesmo "medium" que escolheu em 1968. Esclarecemos: foi neste ano que publicou o seu famoso "Statement of Intent", um "guia" onde propunha a linguagem como material da escultura e a existência da obra de arte independente da sua construção física.

Responsabilidade  existencial

Para situar tal gesto, vale pena recuar alguns anos, até ao início da década: "Os tempos eram outros e eram terríveis", conta Weiner. "Vimo-nos confrontados com uma cultura que nos tinha dado a II Grande Guerra Mundial, a Coreia e que preparava, em segredo, o Vietname. E o que tentámos fazer foi levar, de novo, a dignidade à experiência sensual. Se reparar nos anúncios que aparecem na série televisiva 'Mad Men' há ali algo de visceral. Os artistas, pelo contrário, procuravam descobrir o que podia ser a sensualidade na arte".

Escritores com Jack Kerouac, Gregory Corso, James Baldwin ou os expressionistas abstractos inspiram essa "responsabilidade existencial", uma outra forma de ser indivíduo e artista, assinalada, por exemplo, numa viagem em 1960 ao longo dos EUA: pela estrada fora, Weiner foi deixando objectos e realizando intervenções, como "Cratering Piece" (1960), conjunto de pequenas remoções da terra com cargas com dinamite. Daqui desenvolveria a ideia da escultura como algo que podia ser transportado, movimentado e posteriormente, descrito pela linguagem.

Por detrás desta actividade, o encontro com a arte. "Sim, foi por isso que quis ser artista. A descoberta do [Piet] Mondrian, ou de 'The Palace at 4 a.m.', de [Alberto] Giacometti que nos permite imaginar, ver o espaço através do espaço. Fui inspirado a fazer arte por causa da arte. Quando jovens tendemos a fazer coisas parecidas com as que gostamos. Mas depois apercebi-me que as questões e as necessidades tinham mudado".

Nos finais dos anos 60 abandona a pintura, depois das séries "Propeller Paintings" (1964-65) e "Removal Paintings" (1966-1968). Eram obras marcadas por uma certa tangibilidade, próximas da escultura, "mas não estavam a permitir-me ir mais longe. Por isso, recuei às minhas raízes escultóricas até chegar ao momento em que me encontro agora". Sem os dramas que as rupturas trazem: "Não foi nada de radical", atalha. "Nunca deixei de fazer escultura e provavelmente continuo a pintar porque desenho de forma a ver o que estou a pensar. Ainda hoje creio não saber o que constitui uma pintura ou um desenho. Mas se calhar em 2010 isso já não é importante, pois não?".

Então, porquê a linguagem? "Porque trazia menos problemas. [Com a linguagem] podes usar um pedaço de madeira e não necessitas da mão do artista. Ou de madeira portuguesa, marroquina ou americana. Tens apenas madeira. Abriu-se para mim um mundo com o qual podia lidar melhor. Podia trabalhar os materiais e simplesmente apresentá-los".

Alguém que mostra coisas

Por esta altura Lawrence Weiner já tinha exposto com Robert Barry, Douglas Huebler e Joseph Kosuth na galeria de Seth Sieglaub, em Nova Iorque (foi neste âmbito que publicou "Statement of Intent"). E como aqueles, seria considerado um artista conceptual, classificação a que continua a resistir: "Não a compreendo. É idiota. Todos os artistas usam conceitos. Não se pode ser pintor sem ter um conceito de escala. Foi uma expressão que as pessoas inventaram para dizer que eram diferentes das outras. Eu não me sentia diferente. Acontece que em vez de acrílico ou óleo, usava linguagem".

A irritação com o termo fica por aqui. De resto, continua a acompanhar a obra de artistas ditos conceptuais como Bruce Nauman, Barry Le Va, Robert Barry ou o minimalista Carl Andre. Reconhece, inclusive, que com eles partilhou e partilha aspirações: "Num certo sentido estamos do mesmo lado da barricada. Qual? Do lado que acredita que as pessoas não são estúpidas, que não é preciso que lhe expliquemos o que estamos a mostrar ou a fazer. Que acredita que a obra, como é apresentada, entra na cultura e não necessita da história de arte para a proteger".

É esta generosidade que explica a franqueza da arte de Weiner quando olhamos para os trabalhos de "Poignant Adapation". Estão lá, como uma presença, sem metáforas. "Por alguma razão passei a interessar-me pelo material", explica. "Um dia pode ser betão, no outro madeira. Algo me atrai. Tiro o mesmo de ambos, ou de outro material qualquer, e trabalho com isso. Começo a perceber a sua materialidade, a forma como ela se relaciona comigo". Do particular o artista passa ao universal. Esse é o passo seguinte: "Construo configurações, sobre a forma como se relaciona com outros materiais, com o mundo. Reúno-as e traduzo-as. Porque se vemos coisas, ferro, madeira, aço, pedra madeira, os actos de empurrar ou puxar, temos que as traduzir. Penso então em substantivos, dou-lhes forma e apresento-os. Não há nenhuma mistificação. É tudo sobre o que diz. Sem duplos significados".

A ideia para apresentação das frases nas paredes surgiu por acaso e a pedido de um coleccionador italiano: "Recebi uma carta do seu arquitecto a perguntar-me se podia dispor assim os trabalhos. Disse-lhes para seguirem em frente e passei a usar essa forma. Antes apresentava-as em folhas de papel, convites, livros. Trata-se apenas de um expediente para apresentar as coisas em público. Fico tão satisfeito como quando as mostro num livro, no espaço público ou quando alguém as comunica a alguém". A fonte mostrada na Cristina Guerra foi inventada pelo artista. "Chama-se 'Margaret Seaworthy Gothic'. Antes tinha usado outras, mas comecei a perceber que as pessoas me estavam a associar demasiado a uma tipografia e criei uma fonte para mim. Que não era intelectual, prescritiva ou autoritária".

Apresentação no caso de Lawrence Weiner pode implicar também tradução, adaptação, como o título da exposição parece sugerir. Até que ponto, portanto, a obra se transforma no processo? "O meu trabalho é feito para se adaptar à cultura de cada indivíduo. Pode mudar de facto, um pouco, em cada tradução. Há limites sobre quantas línguas podemos entender, mas a ideia está lá". E avança com um exemplo: "Estou a trabalhar numa peça com um substantivo que tem um duplo sentido em português: 'graça'. Pode significar elegância ou humor, piada, gracejo. E acho isso interessante, porque na verdade é a mesma palavra, a mesma coisa, sobretudo quando percebemos o que as causa. Eu estou interessado em coisas que causam outras coisas".

E arte de Lawrence Weiner? Como jogo de palavras, escultura feita em linguagem, o que pode causar, originar, provocar? "Espero que a minha obra transforme a cultura onde entra, mas não creio que a cultura possa mudar a minha obra. Os artistas tem a mesma responsabilidade que qualquer outra pessoa. Tentas fazer um trabalho que não possa ser usado em coisas de que não gostas. Não creio que minha obra possa ser usada de uma forma racista ou sexista. Evitar isso não é muito difícil. Porque no fundo é a cultura que muda para se adaptar à obra. É disso que trata a arte: um grupo de pessoas [os artistas] com desejos e necessidades mostra coisas à sociedade, esta toma algumas para si e integra-as na sua vida. A arte não diz coisas às pessoas, mostra-lhes coisas. É isso o que faço".

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