João Paulo Borges Coelho e as mensagens do além

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As mulheres são as donas da história em "O Olho de Hertzog", Prémio Leya 2009. Quando começou a escrever este romance, João Paulo Borges Coelho, pensava que se tratava de uma história de homens. Depois as mulheres infiltraram-se e começaram a tomar conta do livro. O escritor moçambicano ainda não desvendou "a razão desse mistério" mas talvez a culpa seja da sua mãe.

O historiador, que se doutorou em História Económica e Social pela Universidade de Bradford, no Reino Unido, conta que tem uma mãe "muito poderosa do ponto de vista do imaginário", que lhe "acendeu muitos fogos neste campo". Este professor universitário nasceu no Porto mas foi com poucos meses de idade para Moçambique. A sua mãe era de lá, o seu pai de cá. Agora, a sua mãe vive em Portugal, e é o filho que vive em Moçambique. "Ela conta histórias num registo que está muito longe do real, como se fossem reais. Tantos anos passados, tem sempre maneira de me surpreender", diz João Paulo Borges Coelho, a beber uma água sentado no refeitório do grupo Leya, em Alfragide. Há uns anos, João Paulo falava com a mãe ao telefone sobre aquele campeonato da Europa de Futebol em que Portugal "fez muito bem" e o país parecia estar "em pé de guerra com bandeiras". Ela estava a descrever a situação ao telefone e explicava ao filho: "As pessoas estão nas casas, está um silêncio mortal na rua e de repente, há um barulho que sai como se viesse de dentro da terra [devia ser um golo, diz o filho] e os cães começam a correr nas mais desencontradas direcções."

Foi também por causa de uma mulher que João Paulo se candidatou ao Prémio Leya 2009. O escritor moçambicano estava a acabar de escrever este livro, quando a sua mulher, ao ler o jornal viu o anúncio do prémio no valor de 100 mil euros, e insistiu com ele. "Manda lá, manda lá", disse ela. "Devia haver aí uma conjugação de factores e eu mandei. Meses depois, só queria que me libertassem para poder ir para o editor com o livro. Ninguém pensa que vai ser escolhido, é muita gente. De repente, foi o anúncio e a confusão que se seguiu. Tratou-se de uma influência do além, não sei bem como interpretar", conta o escritor.

Os diários de Albasini e do general

A verdade é que quando João Paulo Borges Coelho começou a escrever "O Olho de Hertzog" a história não existia de todo na sua cabeça. "Existia a vontade de escrever sobre a cidade de Lourenço Marques e sobre o jornalista João Albasini, uma espécie de não-herói." E era esta vertente de não-herói que interessava ao escritor moçambicano para sair daquela ideia de que as personagens fortes são sempre ou o mau colonialista (a incarnação do Diabo) ou o herói que é puro, o guerrilheiro que libertou o país.

"Esta é uma figura cheia de ambiguidades", explica Borges Coelho e mais do que a raça - João Albasini é mestiço - o que lhe interessava era o facto de o jornalista se afirmar, quando escrevia, como português. "Como se ele fosse acusado de não ser moçambicano antes de haver a moçambicanidade", diz. Albasini acreditava piamente no que lhe dizia o regime, na legislação. "Este é um período da lei do assimilado, que dizia que 'o preto que se comporta como o branco, que come à mesa, que fala e escreve bem português, que canta o hino nacional, pode aspirar a ser branco'. Esta é uma fase em que João Albasini se começa a aperceber do logro. É uma figura interessante porque quando assina de uma maneira é o português indignado, quando assina de outra, é negro revoltado. Tudo isso se processa dentro dele", explica.

À medida que João Paulo Borges Coelho foi conhecendo melhor esta figura histórica em vez de se definirem algumas destas ambiguidades, ainda se aprofundaram mais. O escritor descobriu "O Livro da Dor", que é um diário íntimo amoroso publicado por alguém da família do jornalista que escrevia editoriais e crónicas n' "O Brado Africano". "Albasini apaixona-se por uma amiga da filha quando já tem quase 50 anos, estava num processo de divórcio e foi um escândalo. É uma figura fascinante que os próprios jornalistas moçambicanos não conhecem", acrescenta.

Para este "O Olho de Hertzog", houve outro ponto de partida: "As Minhas Memórias da África Oriental", o diário do general Von Lettow-Vorbeck. Um diário "muito bem feito", "cheio de impressões" sobre aquele contexto da campanha militar no Norte de Moçambique, mesmo antes do Tanganica, o território alemão, em que vai tecendo considerações de lógica militar.

Há muito tempo que João Paulo Borges Coelho pensava naquela campanha e intrigava-o como é que uma cidade podia estar numa transformação, tão grande e tão profunda, com a guerra relativamente perto a acontecer. Sabia também que não se pode compreender Lourenço Marques sem compreender a África do Sul. E depois, tropeçou num crime que foi muito mediático na altura, "uma espécie de Bonnie e Clyde": a saga dos Foster. Além do que leu nos jornais, o escritor estava um dia a fazer "zapping" na televisão e viu um documentário sobre o tal grupo de criminosos. "Depois foi simplesmente deixar-me ir, às vezes entrava em becos sem saída e outras vezes não. Ia andando, negociando, ia brincando."

O "único problema" e o "mais sério" para Borges Coelho foi encontrar "a voz" do seu romance, muito mais do que o enredo. Embora Albasini fosse uma personagem forte, sentiu sempre que não era a voz deste livro. A voz acabou por ser a do tenente alemão, Hans Mahrenholz, cujo papel é o "de transportar a história mais do que determinar o que quer que seja".

Ao escritor moçambicano, por vezes até incomoda, "embora tudo seja relativo", a designação de romance histórico para este seu livro. Pela sua ideia, um romance histórico passa "um rigor e uma mensagem" relativamente a determinado período histórico e "as personagens submetem-se, conformam-se e são ajustadas, sofrem dietas" para caber dentro daquele contexto. Na escrita de "O Olho de Hertzog" nada disso o preocupou.

"Muita da literatura moçambicana e angolana tem essa necessidade de definir o tempo e o espaço, quase como uma necessidade de afirmação dos lugares onde a literatura existe. Eu tenho esse rigor, se calhar é um defeito de profissão, mas interessava-me uma genealogia diversa das personagens. O Albasini, que foi real, procurei que fosse real até ao fim. Curiosamente, ontem, ao falar ao telefone com uma das suas netas, ela perguntava-me como é que descobri que quando estava inspirado o seu avô punha o chapéu para escrever? Dizia-me que é uma história fechada na família. De facto, o chapéu é um artifício. Eu não tinha qualquer indicação e por acaso, acertei [mais uma mensagem do além, risos] Ali há um respeito histórico pelo Albasini mas no resto não. Talvez um pequeno respeito pelo general Von Lettow-Vorbeck. São figuras sobre as quais eu tinha mais elementos, tudo o resto a genealogia diverge. Há uma velha que fui buscar a Graham Greene, há a amante do Egon Schiele que fiz renascer porque ela morreu mesmo de febre espanhola, tal como a mulher de Foster. Não há qualquer objectivo de transmitir qualquer mensagem. Não acredito nisso."

É um exercício de diversão. Apetecia-lhe tentar descobrir dentro do seu universo literário o prazer de contar uma aventura, queria ter um olhar quase juvenil mas ao mesmo tempo com complexidades e perversidades. Chegou a um ponto que lhe interessava mesmo uma trama e ver como é que sobrevivia a ela. "Houve algumas angústias no caminho porque fui segurando um segredo até uma fase muito adiantada do livro e todos os dias tinha uma impressão diferente acerca dessa estratégia. 'Será que isto já caiu há bastante tempo e eu estou aqui a tentar voar já sem asas?', pensava.'Ou será que posso segurar um pouco mais?' Não há um lado reflexivo sobre a estratégia, nada disso. Há dias em que está tudo encravado e há dias em que vai andando. Só o posso conceber assim. Apesar desta visibilidade súbita poder levar a que eu tivesse responsabilidades de agora ter que pensar num caminho, não estou minimamente interessado nisso." No entanto o historiador Fernando Rosas, quando apresentou este romance em Lisboa, disse que era um retrato da cidade colonial e que havia uma parte obsessiva de rigor histórico. "Se calhar o meu destino é tentar fugir disso e não conseguir."

Tentou transmitir isso colocando ao longo do livro pedaços de anúncios de jornais. Mais uma vez teve dúvidas acerca desse artifício: "às vezes está exagerado", concorda. Era uma forma de dar uma ideia do funcionamento da cidade. "Houve uma tradição de grandes casas em Lourenço Marques que não deixaram marcas nenhumas. Causa grande estranheza andar pela cidade e verificar que não ficam restos das coisas. Hoje não há ideia do que ali houve, do que se apagou e morreu. É como se nunca tivesse existido."

O escritor Mia Couto também fala dessa amnésia do moçambicano em relação ao passado. A que se deve? "O liberalismo entrou em Moçambique com a crise do socialismo. Juntou-se a fome com a vontade de comer. As coisas mudaram muito depressa e de uma forma estranha, muito agressiva. Subverteu a moral, os princípios, a maneira de estar. Por exemplo, hoje há a ideia de que quem não é rico, é pouco inteligente. Porque quem é inteligente fica sempre rico."

O escritor diz que no socialismo, talvez houvesse um discurso de demonização do passado colonial, mas mesmo assim remetia para esse passado colonial. "Agora não há sequer qualquer discurso em relação a qualquer passado", continua. "As pessoas estão demasiado ocupadas a enriquecer ou a sobreviver para falar de outro tempo. Isso causa-me muita estranheza. É como se houvesse uma deriva e navegássemos sem cartas."

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