Hélia Correia é o gato da casa nesta história de amor

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Para Hélia Correia, a "sabedoria vem dos gregos e dos gatos". Com eles aprendeu tudo. Talvez por isso, nesta entrevista sobre "Adoecer", uma "biografia" (já vamos compreender o porquê das aspas), ou um romance, sobre a musa ruiva dos pintores pré-rafaelitas, Elizabeth Siddal (1829-1862), Hélia diga que ela era como "um gato": indomável, selvagem, inconformada na sua tempestuosa relação com o pintor Dante Gabriel Rossetti (1828-1882).

Os pré-rafaelitas foram um grupo de poetas e pintores que, no final do século XIX inglês, estabeleceram uma série de propostas na arte que contrariavam o modelo renascentista em que se inspirava a academia de arte britânica. Eram rebeldes contra o sistema, com o objectivo de criar uma comunidade contra-regra. Rossetti era o seu lado mais louco, Lizzie a sua "pintura viva", diz a autora. A relação deles estava "fechada aos outros como o pacto de um crime", escreve Hélia. Juntos, entraram numa relação amorosa "que os dilacer[ou] aos dois", e numa espiral de autodestruição.

Não havia romance de Hélia Correia desde "Lilias Fraser" (2001). Agora saem, juntos, o seu romance "Adoecer" e o livro de poesia de Jaime Rocha, seu companheiro, "Necrochipilia". Levam dez anos de investigação, de leituras, de encontros com Lizzie Siddal. Assim, enquanto Hélia ia perseguindo uma vida e entrando na alma desta figura, Jaime foi "entrando na figura de Rossetti, tentando perceber a instabilidade permanente, os desejos dele, o fantasma dele, a criação", explica o poeta ao Ípsilon. "Não há disputas, porque a Hélia é ficção, eu sou poesia".

As gatas interrompem a conversa, miando e pedindo mimo. Emily Duncan, sempre activa, é uma Brontë, "não tem nada a ver com a Dickinson". E é também Isadora Duncan porque dança. Emily "quer brincar o dia inteiro" e rebola-se sob o véu vermelho com que Hélia Correia a cobre. Isadora Duncan fazia a dança dos gregos, "Emily faz a dança dos véus".

A outra gata é Melissa, que Hélia acolheu após a morte de Maria Gabriela Llansol, em 2008. Melissa está sentada na pequena varanda escondida pelos cortinados de William Morris (1834-1896), outro pintor pré-rafaelita, pai do socialismo britânico.

Não são só os cortinados: é o papel de parede, os frisos, as pinturas em que Elizabeth Siddal aparece, nas molduras da sala. São as toalhas de mesa. A cadeira onde se senta. Parece que esta casa, do poeta e dramaturgo Jaime Rocha, que é também de Hélia Correia, é uma ode aos pré-rafaelitas. E mal entramos se percebe que esta é uma história (de amor) longa, muito para além do tempo em que se escreveu "Adoecer".

Foi um projecto longo de muitos anos. O último romance é de 2001, mas este é uma biografia...

Não, não é uma biografia. Aliás, Lizzie Siddal não precisa de biografias porque já tem muitas. [risos] É um romance sobre uma pessoa e não sobre uma personagem. Sobre uma pessoa e com pessoas, e não sobre uma personagem, com personagens.

O que é que isso quer dizer?

Quer dizer que, normalmente, quando escrevo, faço-o com liberdade absoluta. Até em relação a mim, porque nunca faço ideia do que vou escrever. Vou por ali fora e é para onde a escrita quer ir que vai. Neste livro, essa liberdade confrontou-se com o real, pessoas históricas que deixaram um rasto imenso de documentação e também com uma rede de factos e de época de que não quis sair. Não quis fazer uma glosa em plena liberdade sobre uma pessoa que amo muito. Quis que se mantivessem presos naquela grade em que viveram e, portanto, segui todas as instruções, todas as informações que recolhi e que foram muitas. Acho que atingi por dentro, era o que faltava. Na minha arrogância que os gregos me ensinaram a temer profundamente - tenho muito medo e isto é um caso de arrogância - senti que passei para lá das portas que os protagonistas fecharam a todos os contemporâneos.

É a arrogância de afirmar essa certeza?

Arrogância de me sentir, de certo modo, única.

Privilegiada?

Privilegiada. E, mais do que isso, sentir-me o gato da casa. Ser a criatura que esteve dentro, enquanto todos os outros estavam fora.

Nesse sentido, estas pessoas são figuras?

Não, não são figuras como as da Maria Gabriela Llansol. Aliás, no sentido da Maria Gabriela, nunca faria nada porque ela é inalcançável e amo-a muito nesse inalcançável que ela tem. Não há nenhuma procura de similitude.

As figuras, como ela dizia, têm a capacidade de ressuscitar e percorrem toda uma obra. São superiores ao tempo, mais fortes que o tempo, do que a história. Aqui, as minhas pessoas estão completamente abafadas e presas no seu tempo e na sua história e não sairão daí para mais lugar nenhum da minha obra. Bem, isto agora é um parêntesis...

Diga.

A única semelhança com a liberdade das figuras é que percorrem este livro e percorrem os livros de outro autor que é o Jaime Rocha.

Já vamos falar do espectro de figuras dessa relação da sua escrita com a do Jaime Rocha. Isso também tem a ver com a história deste projecto. Foi a todos estes sítios, consultou os documentos.

Nunca tenho projecto de escrita. Nunca sei o que vou escrever. Parto da primeira frase e depois vou atrás. Não comando nada. Isto só se tornou projecto quando prometi à Lizzie: vou escrever "o" livro. Com a continuação das viagens a Inglaterra, o convívio sempre muito íntimo, essa demanda das coisas da vida dela, aí tornou-se numa decisão, escrever este livro. É uma paixão do meu sexto ano de liceu.

Foi uma descoberta da adolescência?

Foi uma paixão pela imagem, pelo quadro da "Ofélia", do [John Everett] Millais (1851-52). Uma grande paixão, um "coup de foudre". Essa imagem acompanhou-me sempre. E depois [continuou] durante a vida, sempre com a minha fortíssima anglofilia a dominar sobre a minha formação românica, francesa. Tem sido sempre assim e isso é uma coisa boa que me tem acontecido: como não é uma cultura académica, é sempre uma descoberta pessoal, não vai orientada por ninguém. Aos poucos, com todo o século XIX inglês, fui descobrindo a existência de personagens. Descobri que aquela figura se chamava Elizabeth Siddal.

Foi um encontro continuado que se foi aprofundando. Mas tenho esse encontro com muita gente, com Emily Brontë [escritora inglesa do século XIX], com Isadora Duncan [bailarina americana do final do século XIX], pessoas minhas, da minha vida, do meu dia-a-dia. Pessoas com as quais estou, muito naturalmente. Depois, à medida que fui aprofundado, a história começou a transformar-se numa história de amor extraordinária. Chegou a altura em que também, sem qualquer objectivo, por pura curiosidade, como leio todas as coisas que se referem à Inglaterra do século XIX, cheguei às biografias. Por acaso, a primeira até era uma biografia francesa do Dante Gabriel Rossetti, e deparei-me com esta história de amor lindíssima. Fui por aí fora, nos trabalhos biográficos sobre os pré-rafaelitas, que são muitos. E descobri uma segunda coisa fascinante, dava-me a impressão de que eles não percebiam nada.

Os biógrafos não percebiam nada?

Sim, os biógrafos, tal como os contemporâneos, não perceberam nada. Aos biógrafos também lhes falta ali o coração, não conseguem tocar no coração desta história.

Porquê?

É uma relação muito estranha, diferente de todos os cânones que possam aplicar-se. Os comportamentos dos dois [Lizzie e Gabriel] são ininteligíveis, enigmáticos, fazem quase desesperar. [silêncio] Não aceitam nenhum contexto.

É uma relação que a linguagem da biografia não consegue atingir?

A relação propriamente dita, sim. Os trabalhos biográficos são extraordinários, muito bons. Quer em termos de investigação, quer em termos de organização da biografia.

Mas uma coisa são factos, outra coisa são as pulsões, as paixões, os não-ditos.

Exacto, são muitos não-ditos. E são não-ditos porque nem sequer há palavras para os dizer. Foi isso que me chamou. Sentia que era capaz de o dizer e que era capaz de entrar naquele segredo, naquele enigma. Por outro lado, há - isso faz parte dos meus prazeres pessoais - os documentos autênticos. Tudo o que for documento autêntico é informação que me interessa. E há muitos, muitas cartas, uma epistolografia imensa, a diarística de muita gente que andou à volta deles. Isso fornece a informação primeira. A informação que tomo como fascinante porque não há intermediários. Os biógrafos são intermediários.

E também já não é factual, porque são leituras.

É outra coisa. É a voz, é ouvir a voz. Assim como visitar os sítios é tocar nos passos deles. Através dessa documentação e, agora, com a maravilhosa Internet... [grande sorriso]

Descobriu muitas coisas "on-line"?

Vou a um "site" de livros antigos, onde encontro muitos livros esgotados, em segunda mão. Além disso, agora já se conseguem ver primeiras edições completas, em fac-símile. Está lá uma mão em que se clica e folheia o livro [risos]. Isso é deslumbrante, podermos ter acesso às primeiras edições!

Daqui consegue-se tocar no coração desta história.

É, é tão bom. De toda aquela gente, todas aquelas edições. Todas não, algumas têm visualização indisponível, o que corresponde a uma ataque quase de choro! Mas não posso ser ingrata, o que está disponível já é uma sala milagrosa. Não equivale ao toque da realidade, porque toquei, com a mão, na única folha que chegou até nós, do caderno que foi enterrado [Dante Gabriel Rossetti enterrou os seus versos nos cabelos de Lizzie].

A que está na British Library, como se refere no livro, com as "marcas do sepulcro, os pedaços roídos pelos vermes"?

Sim, é mesmo assim. Isso é material altamente reservado, tal como a madeixa do cabelo de Rossetti, que está em Cambridge. Consegui que uma amiga (e os amigos não precisam de ser de grande convívio, mas de grandes gestos) do British Council, Carolina Trewinnard, escrevesse uma carta de recomendação que me deu acesso a estas relíquias absolutas: cartas, o cabelo e essa folha. Fiz toda a pesquisa com o meu namorado, uma pesquisa a dois. A recomendação da British Library foi que só uma pessoa podia folhear e sob alta vigilância.

Qual dos dois foi o privilegiado?

Era eu, porque eu é que apresentei a carta. É claro que não obedecemos. [risos] Vieram ralhar-nos! Nós não só mexíamos - era impossível não passar a mão -, como ainda nos deu aquela coisa de cheirar. Queríamos saber se a folha cheirava a alguma coisa. Foi aí que a senhora veio ralhar, ralhar, e praticamente fomos expulsos! Os investigadores não fazem aquelas coisas.

Voltemos à "biografia". Escreve: "Os escritores de biografia redigem com os pulsos amarrados". E mais adiante: "Se temos espaço para alguma coisa, não é para episódios biográficos. O fascínio maior de Lizzie reside exactamente nessa cera onde pode inscrever-se quase tudo e que combina com a cor da sua pele". Sabendo que passou por este trabalho, se não de biografia, de procura de factos e de elementos físicos que documentam esta história, há aqui o jogo de estar a contar uma história real e ao mesmo tempo haver algo que lhe escapa. É assim?

Que me escapa a mim? Não. Acho que a mim não me escapa nada. Há um livro magnífico de Jan Marsh que foca todas as interpretações tornadas ideológicas sobre o papel daquela mulher que foi a grande modelo do tempo. Nesse livro fazem-se as várias interpretações das perspectivas que a abordaram: a feminista, a trágica, a coquete. Contém várias biografias com os diferentes pontos de vista e que, no fundo, se completam. Não há uma contradição. Ela fornece material para todas as interpretações. E, no entanto, mantém-se sempre enigmática. Ninguém tem a veleidade de dizer que esta interpretação ou aquela estão erradas. Porque... [longo silêncio] é preciso um quinto elemento, uma quinta dimensão para os entender.

Foi isso que procurou?

Foi essa dimensão que, acho, me foi dada.

Por isso, se os biógrafos estão de mãos atadas, a Hélia sente uma enorme liberdade para contar esta história.

Os biógrafos não podem sentir. Não é o trabalho deles. E volto a dizer que o trabalho deles é muito bom. Há romances sobre ela também. Aliás, um deles, "Automne", comecei a ler e, com a tal arrogância que sempre me aflige ter e que há-de ser castigada, lembro-me de pensar "não é nada disto". Assim como quem conhece as coisas e vê outras pessoas falarem deles com algum desconhecimento, uma falta de visão sobre o centro....

Os pré-rafaelitas são rebeldes que queriam estabelecer regras contra o sistema, através de uma procura de algo maior que está para além do físico. Há na irmandade uma noção de comunidade?

Existe, sim. Nesta comunidade desejada por eles, e de algum modo vivida, há um modelo estático e medieval, um modelo de rebeldia, sim, são todos imbuídos não do mal, mas da provocação social.

Que é um reflexo do seu tempo.

Sim, é do tempo. Há qualquer coisa de falanstério, de afrontar a sociedade. E o que preside àquele ideal é um modelo comunitário, mas que vejo muito como uma alegria da irresponsabilidade, da adolescência, uma recusa da... [hesitação]

"O fulgor da juventude", como diz no livro. Ou ainda, sobre o casal: "Belas crianças sem educação".

Mas que se poderia expandir a todos, sim. Por outro lado, tudo isso é de tal modo quase uma crise de adolescência que acaba por ser inconsistente. Passados anos, todos ganham sensatez, vivem segunda as normas e são mais ou menos aceites na sociedade, alguns até muito bem aceites, como o [John Everett] Millais e o [Edward] Burne-Jones. Só Gabriel se mantém na sua linha negra.

Toda a rebeldia se dissipa.

Dissipa-se. Nunca foi totalmente realizada. No bocadinho que o foi, foi belamente realizada, mas coincidia realmente com aquilo que ainda não existia que era o conflito de gerações. Era um conflito de gerações de jovens que queriam romper, escandalizar e fugir daquele tempo.

Além da Lizzie Siddal, estamos a lidar com um grande grupo de mulheres sem as quais os pré-rafaelitas não poderiam ter existido: as musas, as irmãs, as esposas...

Costumo dizer às minhas amigas feministas: "Vais gostar muito deste livro". Não estou a falar da minha escrita, mas das personagens. E falo nas feministas porque este grande grupo feminino toca nos pré-rafaelitas, mas não se confunde com eles. Estas mulheres são a estátua do Pigmalião, são mulheres vulgares a quem esperaria a vida que o seu destino de classe lhes ditaria, que tiveram aquele encontro. São mulheres-luas, porque iluminam, com tudo o que é projectado em cima delas. Algumas colaboram com os seus dons, como Jane [Morris, mulher de William]. Todas eram telas onde se pintava e que depois ganhavam vida, mas com o vulto que tinha sido lá posto pelos homens. Não houve sequer uma inflexão, seja do que for, por interferência de uma. Não, as grandes mulheres do tempo estavam paralelas.

Nesse sentido, Lizzie Siddal é diferente.

É diferente, mas também não tem a mínima influência. Praticamente todas as mulheres pintavam a partir de uma breve educação. Georgiana Burne-Jones [mulher de Edward Burne-Jones] cantava muito bem, tocava muito bem piano, e pintava. A pintura fazia parte da educação, mas não destacava ninguém, [tal como] escrever poesia fazia parte de uma educação. A Lizzie é diferente porque - e aí já vamos ao coração da coisa - ela não é uma tela na qual o Gabriel pinta, não é uma mulher-lua, nesse sentido de ser uma superfície plana. O que sinto que acontece é que, enquanto todas as outras mulheres foram escritas por esse ideal, ela foi o ser vivo que incarnava esse ideal sem que ninguém lhe inscrevesse nada. Até porque ela nunca se transformou, nunca se modificou nem para agradar, nem para desagradar. Surgiu como uma pintura viva, intocada pelos artistas. Não foram eles que a construíram, construiu-se sozinha segundo o ideal daqueles homens, e muito especial, segundo o ideal de Gabriel Rossetti.

Diz-se no livro: "Claro que ela não é uma senhora". Há sempre uma tensão entre ela e as outras mulheres, que não advém só do poder de fascínio dela, e que se pode ler também por uma questão de classe.

Sim. Só que essa tensão e essa separação rigidíssima de classes, por exemplo, no caso das outras mulheres, a partir do momento em que se dá o casamento, em que há a bênção da igreja e da sociedade, essa tensão esvai-se. A partir do momento em que se tornam "senhoras", a senhora [William] Morris, a senhora [Ford] Madox Brown, são aceites em sociedade. No caso de Lizzie, isso não acontece porque há também o peso da relação imoral entre ela e Rossetti, nenhum está interessado ou preparado para se deixar vencer pelas normais sociais. Há também o fechamento, a inaceitação da bondade dos outros, que torna essa bondade irritante e acaba por torná-la perversa e há também aquela postura de orgulho, de autoconvencimento de que também ela é uma pintora, não é uma rapariguinha pobre da rua que vai ser educada em casa. Esse papel não lhe assenta. É completamente incompreensível, não tem nome, não se sabe o que é. É claro que ela não é uma senhora: essa marca pesa. Mas ninguém diria isso sobre as outras, que são selvagens convertidos à religião.

Domesticadas?

Domesticadas, sim. Depois de se converterem, estão salvas e são aceites.

Lizzie não é assim.

Não, Lizzie é sempre selvagem.

Há um erotismo na figura dela, uma sensualidade que exala do corpo. Há muitas referências àquela cabeleira ruiva e indomável, de forma quase fetichista.

Ela assustava. Assustava os homens. E com a sua parte de doente, frágil, e de desprotegida, enternecia as mulheres. O erotismo que emanava dela não era um erotismo directo, não era a carne que falava. Era de tal modo embrulhado em mito, o do cabelo vermelho, e inspirado pela distância, tão grande, que os homens, para entenderem, para continuarem a viver no mesmo meio, se consolavam em afirmar o oposto: que era frígida, que não era tão bela quanto isso, que era muito magra, antipática, mal-educada. É a reacção masculina a um feminino que é misterioso, e que tem uma coisa muito irritante para os homens: ela não quer saber deles. Há a típica mulher fatal que é a mulher misteriosa que emana um apelo de sereia, que, quando canta, canta para que o homem a ouça. Lizzie é completamente indiferente ao que pensem, ao que sintam os homens. Só lhe interessava a arte, o envolvimento poético e mítico daquela relação, e o Gabriel Rossetti. Tudo o que estivesse para além disso...

Era mundano?

Incomodava. Estava a mais. Embora ela tivesse relações de amizade, e encontrasse algum, pequenino, conforto junto de algumas pessoas, todo o comportamento indica que ela não quer saber do mundo. Esse mundo contém homens, mulheres, homens como John Ruskin [crítico e poeta que apoiou ideologicamente o movimento pré-rafaelita, 1819-1900] que está interessado em protegê-la e dar-lhe dinheiro, e até isso a incomoda. Tudo a incomoda, tudo o que saía daquele encontro amoroso com Gabriel está a mais. Não diria só que era mundano porque isso significaria que ela se separava pacificamente dessas coisas. É claro que há nisto muito a imagem de um gato. [risos]

O título, "Adoecer", está ligado à ideia de tuberculose, a fraqueza, a neurastenia, coisas típicas do século XIX. A doença de Lizzie dá-lhe um ar desprotegido, mas, apesar dessa fraqueza, rejeita a ajuda. É como se a sua doença fosse sedutora.

É muito sedutora, sim. A doença dela é tipicamente a doença romântica: a mulher magra, que desmaia, e que se opõe como ideal à parideira, a mulher capaz de casar e assegurar o funcionamento de uma família. Nunca se percebeu bem que doença é: hoje facilmente se diria que é psicológica. É realmente a doença do mal-estar. A somatização desse mal-estar. A pessoa está num corpo e está mal, dilacerada, por uma sociedade onde não devia ter nascido. Nasceu no sítio errado, e provavelmente nunca teria encontrado um sítio certo para nascer. Está dilacerada por dois grupos de cavalos: a sociedade, por um lado, muito maligna para uma pessoa que faz o percurso que ela faz. E é a relação amorosa, por outro, que os dilacera aos dois. Porque é uma relação que não tem a ver com o tempo, não tem a ver com a convenção, que não tem a ver com os outros, e que tem um tal peso de destino que provoca depois em Gabriel a vontade tal de ser um homem livre daquela sombra que não o abandona. Sem a qual ele não consegue viver. Não é um acto de vontade, é uma pressão, é um reencontro, é qualquer coisa que ultrapassa as opções dos seres vivos. Essas duas coisas chegam bem para adoecer uma pessoa naquelas circunstâncias.

Mas Lizzie usa essa doença.

Claro que usa essa doença, essa aparência de doença como a sua grande arma. Esse é o seu grande poder, que tem efeito nas mulheres, na parte maternal; não tem grande efeito nos homens, porque é fatigante, dura tempo de mais para que se sintam motivados. Tem grande efeito num homem porque é um homem muito especial, com a sua fragilidade, que é o John Ruskin. E tem todo o efeito em Rossetti, porque tem todo o poder da guerra amorosa. Esse é o diálogo dos suicidas com os trânsfugas. Aquilo vai em crescendo ao longo do tempo. Claro que esse adoecer é o grande poder dela.

Há razões físicas para esse adoecer?

Há teorias: Lucinda Hoxley, a última biógrafa, diz que ela, por ser fraquinha, já tomava láudano há muitos anos. Tenho toda a liberdade do mundo para ignorar as biografias. [risos] Há a lenda de que ficou para sempre doente desde aquela sessão na banheira, mas não ficaram vestígios. E, realmente, há hipóteses, que torno minhas, de que ela começou a tomar láudano quando a doença se tornou insuportável, quando a vida com Gabriel... Isto é um parêntesis, uma das partes mais belas nesta história: quando o homem tenta fazer a coisa certa, por egoísmo, para não ter remorsos, faz a coisa certa aos olhos da sociedade, é quando tudo se torna mais errado, é quando o desastre cai sobre eles, como se fosse uma lição dizendo, "não, não foi para isso que vocês nasceram". Este passo de cedência ao social, a este século, a esta moral, é um passo direitinho para o inferno. Desta maneira é que vocês não podem viver. Isto é muito bonito e não foi nada inventado por mim, foi assim que se passou.

É como se o querer pertencer...

Foi o mais punido. O não querer pertencer era punido socialmente. O querer pertencer foi punido pelos deuses, por algo de mais poderoso. Não havia saída.

Lizzie é pintada como Ofélia e tem uma vida de Ofélia: o suicídio, a vida remetida ao silêncio, o facto de Shakespeare não ter dado a Ofélia a oportunidade de dizer o que pensava, de ter voz. Lizzie teve essa oportunidade? Ou, não tendo tido, este livro dá-lhe essa oportunidade?

É bonito que se pense assim. Lizzie não teve voz porque as mulheres não tinham voz. Só se fossem grandes poetas. A Lizzie não teve voz, mas no caso dela, que era único, ela não queria ter voz, porque não queria falar com os outros. Se alguém falava com ela, calava-se. Ela própria não fabricava voz. Não precisava de voz, porque não precisava de interlocutor. Agora, se lhe dou voz aqui... espero dar-lhe aquela compreensão íntima que não encontrou na altura.

Sentiu resistência da parte da Lizzie em falar sobre ela?

Não, a resistência estava no real, nos factos. Não foi uma resistência no sentido de "não queremos entrar para o livro", mas ao contrário, uma pressão do real que me dizia "nós existimos e temos de entrar também no livro". Era um real com o qual não estou nada habituada a lidar. Em relação à Lizzie, foi tudo muito suave, muito harmonioso, muito cúmplice. Senti-me sempre muito bem a falar dela e a senti-la comigo. Houve uma grande, grande harmonia nesse encontro.

Esse encontro com a Lizzie faz-se a três, porque Jaime Rocha também estava lá.

Estava.

Como se deu esse encontro?

Há pouco não acabei de explicar o processo de partir para o livro. Quando já sabia que ia escrevê-lo, aluguei um quartinho num hotel da Gower Street [no Bloomsbury, em Londres], uma rua de casas georgianas, todas iguais, e foi umas portas ao lado que Millais pintou "Ofélia". Quis ir para uma casa igual, na mesma rua, pisar os mesmos passinhos. Então, aí, em 2005, já tínhamos conversado as duas o suficiente para dizer "vou escrever sobre ti". Foi nesse quartinho que começou o romance, justamente na tarde em que [Jaime e Hélia] regressávamos do cemitério de Highgate. O romance começa assim, de forma muito diarística, com essa impressão: se eles [os mortos] sonham que sou portuguesa, levantam-se todos da campa, porque têm uma péssima impressão do português [Charles Howell, descendente de portugueses] que veio aqui abrir a campa de Lizzie. E aqui começa a grande contenção na minha fala...

Por causa de Jaime Rocha.

Nós partilhamos muito os mitos, com alguma liberdade. Mas o grande núcleo mitológico do Jaime é o meu, e temos em comum também essa volúpia de procurar os sítios. Este ano vamos procurar, e lutar o que for preciso (porque muitas vezes implica grandes lutas com a organização dos lugares, com as pessoas que impedem), vamos procurar a caverna onde Eurípedes escreveu as Tragédias. Procuramos os dois os mesmos sítios e, portanto, fazemos companhia um ao outro, frequentamos os mesmos mitos. No caso da Lizzie também, e sobretudo, para ele, é muito o Rossetti e os pré-rafaelitas. Ele tem uma ligação muito visual, os livros de poemas dele são muito feitos em cima de imagens. Esta peregrinação era uma peregrinação dos fiéis, que eram dois. Ele escreveu já muito sobre a Lizzie, muito mais encriptado, porque a poesia dele é muito mais elaborada, e agora publica outro livro sobre a Lizzie. E, embora tenhamos casas diferentes, pode-se dizer que muitas, muitas vezes estas duas pessoas são convidadas na casa de um, ou na casa de outro.

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