O Kunsthalle Lissabon, na Rua Rosa Araújo, em Lisboa, está diferente. Tem uma luz mansa e as portadas abertas. No interior, então, as alterações são mais fortes. Alguém cobriu o chão de cimento e sobre este desenhou um risco de alcatrão. Também escancarou as janelas, deixando ver o que estava escondido: um pátio, velho, abandonado no fundo do qual se descobrem dois buracos. É este desnudamento do (e no) lugar que tem o título "É um espaço estranho e maravilhoso, o ar é seco, quente e insípido/Precarious, escape, fascination". E consiste na primeira individual em Lisboa de Carla Filipe (Aveiro, 1973), artista com presença confirmada na próxima edição da Manifesta, na cidade espanhola de Murcia.
Mas não deixemos ainda o título. O que significam os dois nomes? Trata-se de uma tradução? Ou duas versões do mesmo título? E que relação apresentam com o espaço desnivelado pelo alcatrão, com o cheiro do cimento húmido, a corrente de ar? Para conseguir algumas respostas ou caminhos para estas, será necessário recuarmos a "Atalho", trabalho apresentado por Carla Filipe no Espaço Campanhã, no Porto, em 2009. Tratava-se de uma peça que permitia o acesso às traseiras de um armazém por meio de uma simples rampa. As pessoas desciam ou não, com ou sem receio, colocando em acção o corpo. Ora, uma situação semelhante é trazida para o Kunsthalle Lissabon com a diferença que nos limitamos a olhar e a imaginar um atalho (uma escada) para o pátio.
A arte como necessidade
A obra de Carla Filipe existe nestas ramificações, nas ligações entre momentos e pesquisas, entre trabalhos que esperam o seu tempo, lentos à espera de uma decisão, de um clique. A ideia de exposição - ou disposição - no espaço é, aliás, fundamental no seu processo criativo, aspecto a que não será alheia a sua ligação à cena artística surgida no Porto na década passada, à margem das galerias: expôs no espaço "Atmosferas" e ajudou a fundar em 2003 o Salão Olímpico (projecto de artes plásticas situado no salão de bilhares do café homónimo), com Eduardo Matos, Isabel Ribeiro, Renato Ferrão e Rui Ribeiro. À época a necessidade de fazer e mostrar arte era mais forte que as dificuldades ou a ausência de meios. E assim - movida por uma necessidade - começou o seu percurso.
"Foi uma coisa espontânea. Não fazia sentido andar a fazer umas coisas no atelier ou ficcionar um portfólio e ir a galerias. Isso nunca me passou pela cabeça. Percebeu-se que as coisas podem acontecer se nós as criássemos. Era uma energia que estava acontecer".
Carla Filipe lembra outros projectos ("Caldeira", "In Transit", PêSSEGOpráSEMANA"), outras personalidades (José Maia ou João Sousa Cardoso,) mas rejeita uma romantização do passado: "Há ideia de que os artistas que criaram estes espaços na cidade visavam uma espécie de vanguarda. Eu, que frequentei o meio e acompanhei alguns projectos de perto, nunca tive conhecimento de uma oposição à instituição e da criação de uma alternativa. Senti desde o início [do Salão Olímpico] um entusiasmo, como também um tipo de pressão, por parte de algumas pessoas que procuravam em nós uma espécie de revivalismo dos anos 70. O facto é que estes espaços eram espaços paralelos. Não uma alternativa".
E uma ideia de comunidade? "É tão viável como em qualquer outra sítio. Em Lisboa existem artistas que agem em grupos compostos pelos seus amigos. A iniciativa de um pode procriar a afluência de uma ideia de comunidade. Onde cada um desenvolve o seu trabalho".
Não deixa de reconhecer a influência de um contexto físico específico - "Se o meu percurso tivesse sido outro, o trabalho tomaria com certeza outros rumos. As características dos espaços [independentes] foram, nesse sentido, muito importantes". Daí, talvez, será legítimo mapear o interesse pela performance, que identificou a cena artística do Porto, ou por instalações que se aproximam da arte pública. Mencione-se, no primeiro caso, "Não é uma performance é uma necessidade", no Salão Olímpico, em 2003, ou "Ao fim ao cabo o mundo é de todos e não é de ninguém II", no Espaço Campanhã; quanto às intervenções no exterior, refira-se "Periurbano II - doação comunitária c/ cadeado", construção de uma horta em Coimbra, no âmbito da exposição "Busca Pólos", em 2006, no Pavilhão de Portugal.
Da experimentação no espaço ao desenho
A rua, as hortas, os espaços públicos, os edifícios quase devolutos são locais de pesquisa, ateliers onde experimenta, intervém, constrói. Trata-se de uma forma de fazer (e um hábito) que depara, por vezes, com problemas quando se estende a outros locais, mais sujeitos a regras e normas, como a instituição de artes Spike Island, em Bristol. Aqui, em 2008, por motivos de segurança, não pôde queimar, durante a montagem, a série de bandeiras da instalação "Centro", peça que integrava a colectiva "Part-ilha". "Julgo que muitas experiências dos anos 70, encontrariam hoje dificuldades em acontecer. Mas temos de ter a capacidade de ignorarmos [os problemas] e concentrarmo-nos no trabalho... em vez de fazer exigências". Aproveitamos a dica, pois sabemos que os anos 70 são um período importante para Carla Filipe. De que forma? "Representaram um multiplicidade de movimentações e de atitudes que me agradam. Os artistas tomavam um papel muito forte, escreviam textos de artista, críticas. São eles os primeiros a defenderem o vídeo como arte. Mas também gosto dos dadaístas, também gosto do presente".
O desenho é outro suporte privilegiado. Encontramo-lo figurativo, em livros, cartazes, exposições, convivendo com textos, com a escrita, numa linguagem próxima de um registo diarístico, em que a ficção se confunde com o relato vero. O estilo quase sempre cru, moderadamente expressivo lembra - até pela associação ao texto - Raymond Pettibon: "Sim, é verdade. Gosto [do trabalho] dele, mas confesso que os seus desenhos só me bateram mesmo no fundo quando os vi ao vivo em Novembro". Outras referências ou afectos são Mário Botas, as pinturas de Joaquim Rodrigo ("o carácter narrativo sempre me interessou"), os murais de Almada Negreiros, a literatura juvenil ("Querer avançar na leitura até chegar à página do desenho. Existe aqui a relação da escrita com o desenho") ou Ilya Kabakov.
A surpresa do acaso
Certos factores determinam, todavia, o uso do "medium": "Quando o acto de desenhar já não me entusiasma ou surpreende, paro. É no desenho onde controlo melhor o erro, o acaso e o improviso. Por razões óbvias se tivesse um atelier para mim onde pudesse experimentar cimento, alcatrão, partir vidros, e cultivar plantas nas frechas do alcatrão, também dominaria a sua potencialidade. Ora o meu trabalho vive muito da experimentação e da surpresa do acaso".
É esta abordagem processual, na qual o sujeito é contaminado pelo contexto, que enforma os dois projectos que prepara actualmente numa residência artística nos Acme Studios em Londres. Um será realizado em desenho a partir de registos e representações auto-biográficas, "cruzando a linguagem escrita com a visual numa aproximação à poesia visual e à linguagem tipográfica", para dar conta da vivência e das experiências na cidade; o outro será um trabalho de campo em torno dos caminhos-de-ferro, realidade e motivo autobiográfico que tem vindo a trabalhar noutros projectos e sobre o qual já construiu um arquivo de imagens.
Um conhecimento do local e do contexto feito de percursos e caminhadas, encontros entre textos e línguas (inglês e português), ramificações e re-ligações. Como a exposição no Kunsthalle e, provavelmente, o trabalho que vai desenvolver na exposição internacional Manifesta 8, em Múrcia, a convite do colectivo europeu tranzit.org