A morte à solta no Chile

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Alfredo Castro

Alfredo Castro olha para o ecrã de televisão e vê uma multidão de Raúl Peraltas na rua. "Vivo em Santiago e ao ver as imagens, a seguir ao sismo [que atingiu o Chile], das pessoas a assaltarem as lojas, a roubarem, vejo essa realidade: uma espécie de vigança por serem tão pobres. São pessoas que flutuam numa sociedade que não lhes deu nada, uma sociedade baseada na impunidade, pessoas que não têm estrutura de vida, gente apolítica, sem sentimentos pelo outro".

Eis Raúl Peralta, um assustador paradoxo: misto de animal e máquina (de matar), um vazio muito carregado, à beira de explodir. Explode. Mata. E aí sossega, até encher-se outra vez de vazio. Raúl Peralta é um buraco negro em "Tony Manero" - e é verdade que por vezes ele engole o filme.
Vive em 1977, mas pelo que nos conta Alfredo Castro  continua a viver no Chile actual. Alfredo, 58 anos, é o actor que "interpreta" essa personagem - entre aspas porque, diz-nos, também escolheu, e isto há 20 anos, o seu paradoxo: ocupar essa zona ambígua do "interpretar e não interpretar", levando para o palco ou para o "plateau" as suas "psicoses".

Pablo Larraín, 34 anos, é o realizador. Ele e Alfredo foram co-argumentistas do filme, os criadores de Raúl Peralta, esse aspirante a dançarino de "disco" que na Santiago do Chile da década de 70, nos anos mais duros da ditadura de Pinochet, estuda os passos de John Travolta/Tony Manero em "Febre de Sábado à Noite". É um dançarino e é um "serial killer".
"Esse filme ["Saturday Night Fever" de John Badham] era perfeito para o que queríamos contar", avança Pablo. "É um filme sobre um 'working class hero' que se torna um sucesso nas pistas de dança. Não é um tipo que queira dinheiro, é um tipo que quer dançar". (E Raúl Peralta enquanto dança ao menos não mata.)

Sendo um filme americano, o de Badham, isso permitiu também a Pablo Larraín abrir caminho - embora em "Tony Manero" tudo seja paradoxal - ao retrato político e histórico de uma era, a da aliança entre um regime ditatorial e a administração americana (a CIA apoiou o derrube de Salvador Allende, em 1974, e a subida ao poder de Augusto Pinochet).
"Febre de Sábado à Noite" foi um filme muito popular em 1977 no Chile. Porque era americano, foi um dos poucos que a censura, acrescenta Alfredo Castro, deixou passar. "Foi um dos piores anos de Pinochet", diz o actor, "aquele em que ele mandou matar mais pessoas". Por isso, na altura, Alfredo recusou-se a ver o filme com Travolta. Era uma forma de resistência - só o viu para se preparar para "Tony Manero", por causa das cenas de dança, mas não quis mergulhar nele; quer que ele permaneça um fantasma.

O corpo é que fala

A dança era decisiva para Pablo Larraín e Alfredo Castro. "O corpo é que fala", começa por dizer o realizador, ao telefone de Santiago. "A forma como Raúl Peralta dança é a forma como ele se relaciona com o mundo. Todos nós dançamos de forma diferente, não há outros como nós".
É o mais perto que conseguimos estar de uma certa humanidade de Raúl Peralta, para além disso. Tal como o passo de dança é o mais perto que conseguimos estar de um diálogo de um filme dito tradicional. Ra??l nunca fala. A não ser aí, não falando.

Foi a partir do silêncio que Alfredo Castro, actor, dramaturgo, encenador e argumentista - e no passado professor de teatro de Larraín -, começou a trabalhar. Conseguindo, da parte do realizador e do outro co-argumentista, Mateo Iribarren, a cumplicidade para apagar, apagar, apagar o que tinha sido escrito. "Raúl não fala, não age. A dança é a única hipótese de ser alguém, de ser um outro. Dança para não falar, para não ter sexo. A vida é horrível, a não ser quando ele dança".
Quer o realizador quer o intérprete - melhor seria dizer: o "performer" - falam de uma rodagem que arriscou o vazio. O que foi "dirigir" um actor neste filme? Responde o realizador: "Disse-lhe [a Alfredo Castro] algumas coisas, não muito, sobre como usar o corpo, a informação necessária para ele se mover. A câmara ia atrás dele. Ninguém sabia para onde ia, nem ele. E isso cria uma certa tensão. E um grande mistério. Não sabíamos o caminho, não havia marcas. Apenas tentávamos encontrar uma saída. Errámos muitas vezes, mas algumas acertámos".

Alfredo fala de uma "enorme liberdade". Fala de um cineasta "que, sendo jovem, está ainda à procura de uma poética". Chegavam ao "plateau" e perguntavam: "isto é o texto, o que vamos fazer?". Improvisavam. Iam com as cenas para vários lados, "o sexo com sexo e sem sexo, separados e juntos, com beijos e sem beijos"...
E Raúl Peralta quem é? O Chile dos anos 70? O âmago de um Chile que ainda vive hoje? É Pinochet, arriscamos? O actor é mais generoso com a curiosidade: "Sim, Pinochet matou". Já o realizador diz que não quer direccionar as interpretações do filme. Prefere assim: "Raúl Peralta representa uma sociedade. O seu comportamento é o comportamento de um país. Aquela impunidade é a impunidade que está no ar. Ele faz o que ele vê. Não se deve julgar o que ele faz sem julgar um país. Como nos filmes de Pedro Costa, que mostra Portugal de forma muito privada, muito pessoal, também eu convido as pessoas a entrar no meu país." Estão os dois a falar do mesmo, e não é por acaso que já acabaram outro filme juntos, o segundo de uma trilogia dedicada ao Chile de Pinochet. Passa-se no dia do golpe militar, em 1974, a personagem principal trabalha no Instituto de Medicina Legal, onde chegam cadáveres, mas é, e temos de acreditar, uma "love story".

"As pessoas que viveram esses acontecimentos", conclui Alfredo Castro, "ainda falam nesses tempos. O problema é com os jovens chilenos: pensam que não pertencem aquele momento histórico. Por isso estou orgulhoso de Pablo" - é o orgulho do mestre em relação ao pupilo. "Ele é jovem mas sabe que não pode escapar à História do seu país." Diz-nos isto Alfredo, e sabemos que tem estado nestes dias à procura de Raúl Peralta no ecrã da televisão.

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