"Um Profeta", de Jacques Audiard, é "filme de prisão" cruzado com "filme de mafia". É o épico trabalho de (re)construção de um prisioneiro, árabe, figura angelical e simultaneamente implacável - Tahar Rahim, actor desconhecido, de 28 anos, foi o melhor intérprete do ano nos European Film Awards.
Condenado a seis anos de prisão, Malik - nome da personagem - navega entre os poderes e as línguas dos vários "milieus" - corso, árabe... Estabelece cumplicidades antagónicas, fica refém da lei do "pai", o mafioso que controla a prisão (Niels Arestrup). Até o trair e afirmar a sua identidade: o profeta de uma nova ordem criminosa - daí o título provocador.
Jacques Audiard, o realizador, fala de Malik como de Ulisses. Fala deste (anti-)herói de uma narrativa épica como de um herói ambíguo, feito de virtudes e de artimanhas. Politicamente incorrecto visto daqui, de hoje. Mas, hoje, temos de contar com ele. "O cinema deve assemelhar-se ao que se vê na rua", diz Audiard.
Quando "Um Profeta" passou em Cannes, assumimos que o nosso coração, de tanto bater, quase parou. Não era rima fácil com "De Tanto Bater o Nosso Coração Parou", título do anterior filme de Audiard. Era dar conta da vibração eufórica que tomou conta de uma sala inteira perante um velhinho "filme de prisão" transformado num mundo novo - acabaria por receber o Grande Prémio do Júri do festival. Era a reacção perante a proximidade de gestos e acontecimentos fundadores, como a transmissão do saber, a filiação, a traição. É assim que Audiard filma: gestos iniciáticos, uma primeira vez fundadora para quem constrói a sua identidade.
Foi por aí que começámos a conversa com o argumentista e realizador de 57 anos que não deixa de falar com nostalgia do tempo - e não foi há tanto tempo - em que o cinema provava que a vida existia.
A metamorfose, o facto de uma personagem se reinventar, é determinante no seu cinema: alguém que se torna "bigger than life", "bigger" do que a sua própria vida. Há vários exemplos: Matthieu Kassovitz em "Um Herói Muito Discreto" [1996], Emmanuelle Devos em "Nos Meus Lábios" [2001], Tahar Rahim em "Um Profeta". Os filmes não fazem mais do que observar esse processo...
Sim, um processo de construção. Não sei se poderei dar uma resposta de argumentista [o argumento original é de Abdel Raouf Dafri e Nicolas Peufaillit e foi reescrito por Audiard]: direi, então, que o argumentista gosta muito do processo dramatúrgico que consiste em fazer aparecer um herói a partir de uma personagem anódina. Mas talvez isso seja insuficiente. E talvez não tenha resposta para isso.
Poderia dar uma resposta de ordem moral. Por exemplo, que o facto de esse tipo de personagem sair da sua condição para ir em direcção a outra põe uma questão simples: teremos direito a uma vida ou teremos direito a várias vidas? Se temos direito a outra vida, qual o preço a pagar por isso? Isso seria uma resposta moral e optmista e é o que penso: face a um mundo duro, o cinema deve propor possibilidades de alternativa a um destino.
Poderia também dizer que é essa a minha relação com o cinema, que isso interroga a razão pela qual um dia decidi, tinha 41 anos, fazer cinema [primeira longa-metragem, "Regarde les Hommes Tomber", de 1994]. O cinema era para mim uma segunda vida. Falo hoje disso de forma mais desligada, mas o cinema foi muito importante. Eu era praticamente um autista, tinha muitos problemas, e o cinema serviu-me, e continua a servir-me. Bom, acho que não fui tão preciso desde o exame do final do liceu [risos].
Que consequências, em termos cinematográficos, tem essa hipótese de segunda vida? Há sempre um momento, nos seus filmes, em que pensamos no cinema mudo...
Eu também...
Porque há um mundo que começa, que se anuncia...
Quando diz que o meu cinema evoca o cinema mudo, eu não sei o que quer dizer, mas sei que isso é verdade. Porque pode ser essa a história da passagem do silêncio à palavra. Não é por acaso que um dia fiz um filme sobre uma rapariga que era surda ["Nos Meus Lábios" - ver textos nestas páginas]. E que essa ideia de partir de um mutismo para a possibilidade de uma expressão faz parte da coisa. Com a estética, com a forma, para mim muito marcante, de alguns cineastas do mudo: [Friedrich] Murnau, [Fritz] Lang, alguns filmes de René Clair. E mesmo os irmãos Lumière. E não cito [David W.] Griffith porque ele é o menos mudo dos mudos. Ele estava noutra, a questão que ele punha era de ordem mitológica. Para mim, Griffith é aquele que descobre, fazendo-o, uma utilização do cinema em favor de uma civilização, americana. Eu penso mais nos cineastas europeus, no expressionismo e no pós-expressionismo, "O Último dos Homens" [1924] e o "Fausto" [1926], do Murnau, "A Morte Cansada" [1921] do Lang.
Numa entrevista a um jornalista americano sobre "Um Profeta" disse que o seu filme não era um "filme social", não havia mensagem. Mas como, interrogou-se o jornalista, se o filme é um documento sobre a vida nas prisões? O seu cinema presta-se voluntariamente a esse tipo de colisão; parte do realismo mas instala algo mais distorcido...
Diria que "Um Profeta" é um filme que corta e cola dois elementos heterogéneos: o realismo, algo que está no âmago do cinema, e a ficção, que seria a contradição disso. O que me interessa é o que se passa entre...
Qualquer coisa da ordem do mitológico...
Exacto, quando se fala da fabricação do herói, no momento em que nos tornamos outro - corro aqui o risco de passar por pessoa velha ou demasiado cultivada... - vamos pensar forçosamente na "Ilíada", em Ulisses. Porque há uma característica no herói grego que, vista hoje por um ocidental numa sociedade liberal, é quase inaceitável. Essa característica é a completa adaptabilidade do herói. Que se faz com mentiras, artimanhas, sinceridade e virtude. A capacidade de estar sempre em sintonia com o outro, de se adaptar ao outro. Daí a necessidade de uma metamorfose. Se estamos parados, estamos mortos. O herói grego precisa dessa coisa complexa e dinâmica, estando sempre do lado da vida. A personagem do filme, Malik, é um herói assim: um herói ambíguo, se o olhamos a partir de hoje. Feito de virtudes e de vícios, mas isso é a própria vida. Em certos momentos ele tem de dar provas de virtude, noutros tem de ser vicioso. A sua vida depende disso.
A vida nas prisões interessa-lhe ou é apenas um cenário para filmar a evolução desse herói?
Como cidadão, interessa-me. Mas para o filme, o que me interessa é saber isto: por que é que não há filmes de prisão? Por que é que o cinema foi tão competente em vários campos sociais e abandonou isso? Por exemplo, a fábrica, o trabalho... Por que é que o cinema não está atento ao que faz a vida social, ao que estabelece laços entre as pessoas?
Várias gerações, três ou quatro, foram educadas pelo cinema. No sentido em que o cinema mostrava ou geografias que não conhecíamos, ou seres humanos que não conhecíamos, ou o trabalho, a prisão, o Exército. E as cidades.
O cinema era muito preciso, muito rico, sobre aquilo que fazia as relações entre os seres humanos, entre o homem e a mulher. Se vejo um filme dos anos 60, época da minha infância, um filme sobre Paris, por exemplo, a preto e branco, graças a esse filme não perco as minhas memórias. Vejo uma rua, vejo um tipo de carro e posso exclamar: ele existia, não o inventei! O cinema certificava, garantia, o real. Isso, esquecemo-lo. O cinema dizia a verdade. Quando vejo Jean Gabin na fábrica em "Le Jour se Lève" [Marcel Carné, 1939], isso existia, era assim um operário. Hoje o cinema não mostra isso, não mostra as prisões. É isso que me interessa.
E temos a personagem de Malik. Há intenção de lidar com uma figuração: o árabe...
Claro, é esse o motor do filme, é esse o objectivo que o argumentista se coloca. É o que acaba de dizer, e, se virmos a coisa ao contrário, temos uma questão de "casting". Depois do meu filme anterior, "De Tanto Bater o Meu Coração Parou" [2005], não tinha projecto, estava um bocado embaraçado por isso, e apercebi-me de uma coisa: sabia que não queria trabalhar com os mesmos actores, que tinha adorado, aliás, mas não queria trabalhar com pessoas parecidas comigo, cultural e fisicamente. O cinema deve assemelhar-se ao que se vê na rua. Em termos práticos, como cineasta à procura de um "casting", quando ando pela rua o que oiço já não é aquilo que os meus actores diziam nos meus outros filmes.
Por isso são os árabes, é a imagem do árabe, como ícone, que é preciso promover. Para que se pareça com a sociedade onde vivo. Se continuo a filmar as pessoas que se parecem comigo, isso já não quer dizer nada.
Teria sido complicado fazer este filme há seis anos, mas aproveitámos o sucesso de "De Tanto Bater..." [oito Césars, os Oscars franceses, entre eles o de melhor filme e melhor realizador; Urso de Prata de Berlim]. Se esse filme não tivesse tido público, "Um Profeta" não teria sido possível.
Falámos da metamorfose de personagens. E em relação à metamorfose do realizador? A história do cinema francês é também uma apropriação de códigos do cinema americano para dar origem a outra coisa. Por exemplo, os policiais de Jean-Pierre Melville - o seu cinema é diferente do dele, apesar de ambos usarem chapéu [risos]...
... sim, o chapéu.
... mas o cinema americano dos anos 60 e 70 faz parte da sua memória de cineasta: "De Tanto Bater..." era um "remake" de "Fingers", de James Toback [1978], a propósito de "Nos Meus Lábios" falou de "The Honeymoon Killers" [Leonard Kastle, 1969], e quanto ao filme de prisão ele hoje está na TV, nas séries, mas já foi um género no grande ecrã.
É difícil definir qual o meu lugar, porque não tenho uma visão exterior do que faço e porque tomar um lugar não é o meu projecto. Sigo as coisas, sigo temáticas, mas qual é o meu lugar? Não sei nada disso. Tenho grande confiança no cinema, é preciso que tenhamos confiança no cinema, e isso leva-me a lidar com certos assuntos. O cinema, para mim, é algo de popular, se não for popular não tenho razão para gostar dele.
Nos últimos cinco anos, os filmes que me agradaram, me tocaram, foram coreanos, chineses, taiwaneses, turcos, espanhóis, dinamarqueses e por isso já não sei onde está o cinema americano.
No passado, sim, a minha adolescência foi cinéfila, entre 1970 e 1989 vi muito cinema americano, mas também Wenders, Herzog, Kluge, cinema brasileiro. E no meio disso, cinema italiano, que teve em mim influência colossal. E todos os cineastas americanos que fizeram esse cinema independente são os cineastas mais híbridos. Viram toda a "nouvelle vague" à lupa. Foram os primeiros enciclopedistas do cinema. Não admira que isso me tenha interessado. [Arthur] Penn, [Martin] Scorsese, [Bob] Rafelson - o olhar do cinema americano foi informado por [Jean] Renoir, [François] Truffaut, [Jean-Luc] Godard, [Akira] Kurosawa, [Yasujiro] Ozu.
O que é que tem visto, então, que o tem entusiasmado?
"Deixa-me Entrar" [Tomas Alfredson, 2008], "Still Life" [Jia Zhang-ke, 2004]... e há filmes que me tocam por razões fetichistas, como "Frozen River" [Courtney Hunt, 2008], que é um filme muito anos 1970...
Faz-lhe lembrar "Wanda", de Barbara Loden [1971]...
Faz-me lembrar "Wanda"...
Há quase sempre um par formado por um homem mais velho e um homem mais novo nos seus filmes...
Não é esse o caso de "Nos Meus Lábios" [o par central é um homem e uma mulher]...
Mas é assim em "Um Herói Muito Discreto", mesmo se Mathieu Kassoviz e Jean-Louis Trintignant nunca estão no mesmo plano porque interpretam a mesma personagem em novo e em velho [o encontro com os dois actores, nesse filme, era um regresso a um "cast"; os dois estavam no filme anterior, "Regarde les Hommes Tomber"]; o pai e o filho, Niels Arestrup e Romain Duris, de "De Tanto Bater...", e em "Um Profeta" o jovem árabe, Tahar Rahim, e o velho mafioso, que volta a ser interpretado por Niels Arestrup...
Sim, é verdade, sei o que quer dizer... Talvez - e para voltar à primeira questão - seja novamente a possibilidade de mudar de vida. Os velhos representam a velha vida, as imagens da vida de que queremos fugir. A personagem nova deste filme é "um profeta", neste sentido: é anunciador de um novo protótipo de inteligência.