Arendt e Heidegger: com cinema dentro

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A verdade bem dita é que poucos jovens vão ao teatro. Corremos o risco de dizer (não fizemos nenhum censo) que, provavelmente, o reduzido público jovem de teatro se resume a estudiosos do assunto e áreas afins. A maioria prefere ir ao cinema. Será preciso o teatro aproximar-se do cinema para se aproximar dos jovens? Não é assim tão incoerente como parece: estamos a falar da geração M, M de "multitasking" (termo cunhado por um estudo da Kaiser Family Foundation em 2005), aquela que passa seis horas e meia por dia a usar diferentes médias ao mesmo tempo.

"Hannah e Martin", de Kate Fodor, que está em cena desde o dia 19 no Teatro Aberto, em Lisboa, vai por esse caminho de cruzamento da linguagem cinematográfica com a teatral. Em palco há vídeo com cor saturada, "se quiser quase Walt Disney", diz o encenador João Lourenço, mas também há preto e branco. O audiovisual é um jogo com os actores em palco e tudo é desmontado: até a utilização do "chroma key" fica exposta. Um dos actores, João Garcia, só aparece em vídeo. Mas nada disso é uma rendição ao cinema ou um modismo, esclarece o encenador: "É por causa da linguagem que dou importância à imagem. Se a linguagem aparece sem mais nada, as pessoas cansam-se, desligam-se, e começam a pensar noutra coisa. Pode até haver pessoas que se sintam incomodadas com o vídeo [no teatro], mas interessa-me  muito o público jovem. Como hoje as coisas chegam muito pela via vídeo, a palavra pode chegar-lhes melhor assim. Interessa-me que as pessoas oiçam as palavras deles".

Eles são Hannah Arendt (1906-1975), filósofa alemã de ascendência judaica que se transformou numa das figuras maiores do pensamento político ocidental com livros como "As Origens do Totalitarismo" (ensaio em que equipara o nazismo e o comunismo, mostrando como a conduta totalitária depende da banalização do terror e da manipulação das massas), e Martin Heidegger (1889-1976), o filósofo alemão que foi professor de Hannah e admirador de Hitler. Ana Pardão e Rui Mendes, respectivamente, corporizam em palco a relação divergente de aluna-professor-amantes que os dois mantiveram. Enquanto ela é uma "filósofa do contacto humano", ele é um "filósofo da torre de marfim", diz João Lourenço.

Simulacros

"Hannah e Martin" é bem um espectáculo da era do simulacro, em que se dá mais valor à imagem virtual do que à imagem real. No Teatro Aberto temos as duas e podemos escolher para qual queremos olhar. E, às vezes, elas até comunicam entre si. A ferramenta audiovisual, sublinha o encenador, é uma forma de clarificar e tornar acessível a vida e a filosofia das personagens. É também um meio de possibilitar, através do grande plano, "uma intimidade do espectador com o actor que ele nunca tem em teatro".

Em 1983, quando ainda nem se pensava em fazer vídeo em directo num palco, João Lourenço já misturava cinema com teatro: "Em 'Suicidário', fiz projecção de películas sobre imagens da Revolução Russa de 1917. Sempre houve uma tentativa da minha parte de fazer uma ligação ao cinema". Em 2006, encenou "Galileu", de Brecht, onde usou o vídeo como ferramenta para localizar Pádua e Veneza. Também havia câmaras em directo. "Tenho usado o vídeo como complemento da cena", continua. Gosta particularmente de mostrar, através do audiovisual, o que uma personagem faz antes ou depois de uma cena. Funciona como extensão do trabalho do actor em palco.

Amor e perdão

"Hannah e Martin" é um espectáculo que se passa nos anos 30 e 40. Mas foram a actualidade do texto e a diversidade de leituras que permite que motivaram João Lourenço e a dramaturga Vera San Payo de Lemos a trabalhar a primeira peça de Kate Fodor, uma jovem dramaturga norte-americana. O encenador viu a peça pela primeira vez há três anos, em Londres, e reconheceu fragilidades de um primeiro trabalho de dramaturgia mas viu sobretudo grandes qualidades. "É um texto que podia ser muito denso, mas é acessível a qualquer pessoa", conta. A autora obteve grande sucesso com a peça, distinguida com o Prêmio Roger L. Stevens do Kennedy Center. Ex-jornalista económica, só há oito anos começou a escrever para teatro. Actualmente, escreve guiões e ensina Escrita Teatral na Universidade da Pensilvânia. Quando ouviu falar sobre a relação de Arendt e Heidegger ficou intrigada. Não percebeu como fora possível a uma filósofa de ascendência judia relacionar-se com um homem que se tornou membro do Partido Nazi - e perdoá-lo.

É Hannah Arendt quem conta essa história ao público desde os tempos em que era aluna de Heidegger, passando pela sua primeira noite de sexo com o professor e pelo retorno à Alemanha para reportar os Julgamentos de Nuremberga para a revista "New Yorker". Hannah também lembra a relação do amante com a sua esposa e os dois maridos que teve, entre outros momentos históricos.

João Lourenço trouxe "Hannah e Martin" para Portugal e fê-la especial. O encenador quis dar uma face original a Hannah Arendt e escolheu para isso uma actriz desconhecida do público de teatro: Ana Padrão teve a sua primeira e única actuação no teatro há 23 anos, em "Mãe Coragem", de Bertolt Brecht, também encenada por João Lourenço.

O encenador quer que "muita gente jovem" vá assistir ao espectáculo. Acredita que isto se concretizará, porque muitos professores já manifestaram interesse. Nós, por cá, ficámos com a sensação de que uma nova categoria de teatro está a emergir...

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