Histórica e sociologicamente a literatura desempenha essencialmente duas funções: entreter e exemplificar. Isto pode parecer menosprezo pela mais nobre das artes, mas entreter e exemplificar são tarefas de imensa grandeza. O tempo é a questão existencial por natureza: o homem tem consciência da sua mortalidade e, não fora a capacidade de se alienar desse destino, todos os seus segundos seriam insuportáveis. Sob este ponto vista, de Homero a Pacheco Pereiro, entreter tem um carácter nobre. Exemplificar, porém, exemplificar em acto, é o melhor que a melhor literatura consegue fazer: dizer "Isto foi assim" e fazer-nos crer que, de facto, pode ou podia bem ter sido assim. Contar uma história é, sub-repticiamente, emular um universo de valores morais, exibir os escolhos que um homem pode enfrentar, enfim, mostrar que a identidade não é um dado adquirido e uma bênção, mas sim potencialmente uma granada. A melhor literatura será aquela que entretenha e exemplifique sem cair na tentação da pregação aborrecida. São exactamente estas qualidades que tornam João Ubaldo Ribeiro verdadeiro escritor maior nestes tempos em que parecem nascer escritores maiores ao segundo. Em "O Albatroz Azul" o prazer de seguir a narrativa funciona de forma quase infantil. Um suicida que calhasse de ler "O Albatroz Azul" era capaz de adiar a morte apenas para ver respondida a pergunta que encerra o prazer de toda a literatura: "O que é que vai acontecer?"
No início temos apenas um velho, Tertuliano Jaburu, que sabe (sabe-se lá como) que o neto que aí vem será finalmente um macho, isto contra todas as opiniões abalizadas. Durante dezenas de páginas apenas temos acesso ao processo mental de Tertuliano, por exemplo, a sua procura do nome certo para o menino. Para Jaburu a graça do cachopo pode determinar o futuro do pequeno, por um sem número de razões, manias e crenças que imediata e subtilmente colocam a personagem mais velha num universo bem determinado, baiano, socialmente-povo. A sua atenção à opinião dos outros denota uma nobreza de carácter, a sua obsessão denuncia que há mais história do que o que até então lemos. Aí aparece o vidente, que vê uma vida boa para o neto e uma vida vazia a seu lado. Jaburu percebe que tem de morrer, mas não sem antes assegurar o futuro do neto. É aí que o livro dá uma volta: numa segunda parte ficamos a conhecer o passado de Tertuliano, a razão da sua obsessão com o neto macho.
A história retorna ao avô português de Jaburu, que pela morte da sua mulher deixa o filho entregue à comadre. Esta encarrega-se de o tratar como filho de seu próprio ventre e permite-lhe dispor de tudo o que há na sua casa. (Este tudo é mesmo tudo, mas convém não avançar demasiado nos dados para não retirar as surpresas ao leitor.)
Exemplar de uma época, essa comadre protege o rapaz de toda a forma, recorrendo a expedientes menos morais - e a voz do narrador altera-se, denunciando não alinhar pela bitola moral dessa época. Essa segunda parte poderia durar três ou quatro vezes mais, e devora-se a uma velocidade vertiginosa. É nela que chega o momento fulcral do livro, quando o avô de Tertuliano morre. O pai de Tertuliano tinha filhos de várias mulheres, mas, como era de tradição, queria que oficialmente o filho varão fosse um homem. O filho varão era um homem, Tertuliano, que não era filho da esposa oficial. Pelo que o pai e a comadre do avô propõem a Tertuliano renunciar à sua mãe. (A bem da narrativa, não devemos esclarecer mais que isto.) Se o fizer permanecerá varão oficial, continuará na família e terá riqueza; não o fazendo corre o risco de ser posto fora da família.
Isto é um esquema aparentado da tragédia: nesta o protagonista provoca, sem saber, a sua própria desgraça; aqui Jaburu, sabendo, provoca a sua desgraça e arca com ela até ao dia do nascimento do seu neto macho. Pelo que quando o livro volta ao "hoje" sabemos que Tertuliano viu a sua vida coarctada, sabemos que se tornou um bastardo deserdado pela família e que carregou essa cruz que todos conhecem e de que ninguém fala. Daí que o neto macho tenha importância acrescida.
Jaburu trata então de arranjar um padrinho para o seu neto. Este é um dos momentos que tornam "O Albatroz Azul" um livro maior: Jaburu entrega o neto a um negro bem posto na vida, sobrevivente à custa de trambiques, ou seja, alguém cuja moral está mais próxima da exibida pela comadre que educara seu pai (e que fora, portanto, causadora da sua desgraça pessoal) do que da sua própria moral. É como se Tertuliano soubesse que para redimir o mal que sobre si recaíra tivesse de usar as armas que não possuía, as mesmas armas da mencionada comadre. Tudo isto resulta numa espécie de miniatura de tragédia, um drama feito de silêncios e espaços em branco que escondem uma aguda reflexão sobre a morte, sobre o poder que esta tem de levar um homem a fazer o balanço de si mesmo.
Simultaneamente, e sem que Ubaldo faça gala disso, "O Albatroz Azul" é um requiem por um universo machista, de crendices e saberes de rua. E por último, ao ater-se sobre as coisas que não esquecemos mas calamos, é uma reflexão sobre a identidade.
Importa ainda assinalar o extraordinário trabalho de linguagem de João Ubaldo, o ouvido para a fala do povo, a concisão narrativa (que segura com rédea bem curta), a extrema sagacidade no tempo de entrega da informação (exacta e medida como num policial) e o amor extremo mas cheio de pudor que há por estas gentes e por estes tempos idos, denunciado pela forma como a voz do narrador se altera e modula. De Ubaldo foi dito que era herdeiro de Guimarães Rosa. Não sei se o herdeiro não estará hoje mais que à altura do mestre.