James Cameron contra o mundo

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Sigourney Weaver no filme "Aliens" (1986)

É o próprio quem o diz: a audiência natural de James Cameron são os "fanboys" obsessivos, os "nerds" engenhocas, os "info-freaks" que acumulam montanhas de dados minuciosamente cruzados e inter-relacionados. Não é por acaso: os filmes que fizeram a sua reputação são pedras-de-toques do manual do culto do filme de género, com atenção simultânea à tecnologia e à humanidade das personagens, numa dicotomia improvável mas equilibrada entre a emoção e a ciência.
Recordemo-nos que a imagem que guardamos pelo meio da tecnologia militarista de "Aliens - O Recontro Final" (1986) é a de Ripley fazendo-se à rainha alien para defender a órfã que adoptou ("Get away from her, you bitch!").

Recordemo-nos que o centro emocional de "O Abismo" (1989) é o casamento em vias de desintegração de Mary Elizabeth Mastrantonio e Ed Harris. Recordemo-nos que por trás das viagens no tempo e das máquinas indestrutíveis dos dois "Exterminadores Implacáveis" (1984 e 1991) esteve sempre o ímpeto emocional de uma mãe que procura proteger o seu filho.

Visionário determinado que se mantém no "loop" da rarefeita estratosfera hollywoodiana mas vive fora da indústria, é um dos muito raros cineastas capaz de impor a sua vontade aos estúdios nas suas próprias condições. Talvez apenas George Lucas se lhe possa equiparar. Mas onde Lucas é um visionário cerebral que delega a execução sempre que possível, Cameron abraça de corpo e alma esse estatuto, procurando ultrapassar-se com cada novo projecto. O actor Bill Paxton, cúmplice de longa data do realizador, disse à "New Yorker" que há palavras que não fazem parte do seu vocabulário: "'não', 'isso é impossível' e 'não pode ser feito' dão-lhe ponta". O filme que deu vontade a Cameron de fazer cinema foi "2001: Odisseia no Espaço" de Kubrick (1968), graças aos seus efeitos especiais. E George Lucas lê a criação de Pandora, o mundo extra-terrestre onde "Avatar" decorre, como tentativa de desafiar o universo criado para "A Guerra das Estrelas" (1977).
Para "Avatar", o realizador recrutou um linguista que criou de raiz a linguagem falada pelos alienígenas Na'vi e uma cientista botânica que supervisionou a criação da flora do planeta - e supervisionou uma enciclopédia de 500 páginas que esmiuça os pormenores deste planeta que não existe.
São bons exemplos do modo como se investe pessoalmente em cada um dos filmes, ao ponto de manusear câmaras, aplicar ele próprio retoques de maquilhagem no plateau e conceber as criaturas que surgem nos filmes. Consequência de ser alguém a quem o trabalho manual nunca meteu medo - trabalhou como camionista, teve empregos manuais para sustentar a primeira das suas cinco mulheres, e começou no cinema na linha de montagem de série B de Roger Corman como técnico de efeitos especiais e decorador. Corman ficou tão impressionado que o encarregou da concepção das naves em "Batalha para Além das Estrelas" (Jimmy T. Murakami, 1980), e daí para a frente Cameron subiu a pulso, dirigindo os seus dois primeiros filmes. O segundo chamou-se "O Exterminador Implacável" e nasceu de um sonho que tivera durante uma pós-produção catastrófica em Itália; custou seis milhões a rodar e rendeu, à estreia, 80.
Claro que, depois, não se é visionário impunemente. A "cobra de água" de "O Abismo" e o robot de metal líquido de "Exterminador Implacável 2" forçaram a programação de efeitos especiais para lá do que era possível até então, valendo em ambos os casos o "scar de melhores efeitos à equipa de Cameron; "Titanic" exigiu a construção de um estúdio suficientemente grande para albergar a réplica do paquete; "Avatar" necessitou de 18 meses de trabalho para a criação do sistema de "performance capture" que é central ao universo visual do filme. E ai de quem se atravesse no caminho de Cameron - Dana Goodyear, na "New Yorker", fala do pesadelo que foi a rodagem subaquática de "O Abismo" (referenciada por aqueles que a viveram como "O Abuso"...), conta o modo como Cameron deitou abaixo o trabalho de pré-mistura de som numa cena de "Avatar", refere a postura "eu-contra-o-mundo" que é quase automática sempre que entra em produção de um filme.
Faz pensar como é que um estúdio se sujeita a estas coisas - a resposta é simples: na esperança de terem o Santo Graal do cinema. E até os estúdios, com a sua proverbial mentalidade de merceeiros, percebem que é preciso alguém suficientemente visionário  para o fazer.

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