Apesar da provecta idade, epifanias só nos aconteceu uma vez nesta vida, em Julho do ano passado, no concerto de Tom Waits ao vivo em Milão. Porque de repente se tornou óbvio que aquilo era muito mais que um concerto: o palco, montado como "junkyard" surrealista, o jogo de luzes, as caras de Waits, tudo isto converteu a sala numa paisagem de Americana ferrugenta, um teatro grotesco mas profundamente humano, em que Waits ora se transformava em monstro ora em vagabundo recolector da quinquilharia esquecida do reverso falhado dos EUA: era o teatro do pesadelo americano servido por uma máquina de trambolhões musicais, mas americanos somos hoje todos e cair caímos todos. Por isso as primeiras audições de "Glitter and Doom", o CD relativo à digressão (que contém um segundo disco com as habituais histórias de Waits) foram uma desilusão: era como quem ouve a banda-sonora do seu filme preferido e se sente órfão das imagens.
Foi preciso deixar o concerto desaparecer da cabeça para dar valor ao disco: centrado em toda a música manca que Waits editou após "Swordfishtrombones", "Glitter and Doom" é uma impressionante viagem por quase-polkas, valsas com os passos trocados, funk com hematomas, blues ferrugentos, vaudeville bêbado, R & B gótico, tudo feito com recurso a instrumentos cujo nome os seus próprios inventores esqueceram. Há faixas extraordinárias, como "Dirt in the ground", mais triste que nunca, de uma contenção imensa, mais próxima da morte que o original em disco; "Goin''Out West", em rockabilly demencial; a lindíssima "Lucky Day"(ao piano); "Metropolitan Glide", desconjunção milimétrica aplicada a um esqueleto blues que descamba em funk com tétano. Mas apesar de tudo, o disco fica a milhas daquele espantoso e comovente espectáculo de redenção e morte. Deus guarde Tom Waits para muitas digressões mais.