"Mil Grous", de 1952, inicia-se com uma cerimónia do chá ("chanoyu") nos arredores de Tóquio. A caminho do templo, o protagonista Kikuji recorda com repulsa a ocasião na infância em que viu Chikako, a amante do seu falecido pai, a cortar com uma tesoura os pêlos do sinal de nascença que lhe cobria metade do peito. Kikuji está reticente: a cerimónia é organizada pela mesma Chikako, cujas intenções, ao convidá-lo, são indecifráveis. A mórbida imagem do sinal dá então lugar à sua antitética: a de uma rapariga que também se encaminha para o templo e que é metonimicamente definida pelo lenço que transporta, decorado com um padrão de mil grous. Na cerimónia, Chikako desempenha o papel de mediadora amorosa, apresentando Kikuji à portadora do lenço. Mas ali também está presente a senhora Ota, que substituiu em tempos a ominosa Chikako nas atenções do pai. Kikuji, naquela ocasião, ignora ainda que se tornará amante da senhora Ota e, após o suicídio dela, da sua filha Fumiko. A rapariga dos mil grous, Yokiko, atravessará a narrativa como uma "impressão de luz" que logo se extinguirá. Mais tarde, tentando em vão recordar-lhe o rosto, Kikuji pondera o contraste entre a impermanência das imagens da beleza e a vívida memória do peito maculado da senhora Chikako.
A percepção de Yokiko ilustra o tropo japonês do "mono no aware", a vigilância emotiva da impermanência do mundo, despertada pela unicidade e pureza de uma imagem - no caso, a dos mil grous. Toda a grande arte japonesa detectou na fugacidade destas imagens o domicílio da beleza autêntica. Mas contra que fundo eclode essa beleza, para logo desaparecer? E, ao desaparecer, o que é que deixa à vista? Eis o segredo da imagem (e do título). Segundo a crença japonesa, o enfermo que modele mil grous em papel tem garantido um pronto restabelecimento, mesmo que se encontre no leito de morte (e não é impossível ver ainda origamis desse tipo à entrada dos templos, como expressões votivas de saúde). O que o título evoca - e assim o tema da novela - é a questão da doença. A doença de Kikuji é a possessão pelo passado, em particular o do pai. É enquanto substituto ou fantasma que as mulheres o solicitam. A sua vida assemelha-se a uma reincarnação de amores insubstanciais. Por isso, também a presença erótica feminina não chega a constituir-se em permanência; Kikuji sente-a como uma "onda", um refluir que a cada instante se limita a presentificar o mesmo: uma força exterior a que as suas amantes se submetem, sob o modo patológico da irresolução e da passividade.
As personagens cruzam-se no interior das estruturas de relação fornecidas pela "chanoyu". Os objectos da cerimónia fornecem a paisagem simbólica da narrativa e trazem inscrita a mesma possessão. As taças do chá não se limitam a acumular as marcas do tempo; também prolongam as relações dos mortos que as empunharam. Tal como o veneno que circula nas intrigas humanas, também o chá flui de taça para taça, de boca para boca, para produzir os mesmos efeitos. Deste modo, o motivo da doença transfere-se para a própria materialidade da cerimónia. Reagindo à professada falta de interesse de Kikuji na "chanoyu", afirma a senhora Ota: "Mas tu tens o chá no sangue", como se diz de uma doença. Porém, na medida em que é infiltrada por aspectos pessoais e pela inquietude do mundo, a própria cerimónia revela-se na decadência do seu significado. O obscurecimento das formas tradicionais, como saldo da derrota japonesa na II Guerra Mundial, foi o tema permanente de Kawabata nas suas obras-primas do pós-guerra. Os seus heróis, separados da tradição, estão condenados a uma relação heteronímica consigo mesmos; são ainda capazes de reconhecer a beleza do mundo, mas não de agir nele ou de o amar. Neles, o prazer e a lassidão estética têm sempre o custo psíquico da crueldade ou do desespero. Há nisso o diagnóstico de uma cultura que se reconstruiu na estranheza a si mesma.
Kawabata foi um dos maiores artistas do século XX. A sua prosa deleita-se na escassez e na rarefacção; equivale à deambulação pelos meandros de um sonho em que poucas coisas existem, mas todas existem de um modo perene: fulgurações, detalhes impessoais, cruéis incertezas. Nela, o que mais importa não é o que é se diz, mas o que fica de fora. Cada texto seu como que subentende um haiku a que fosse forçoso imprimir forma narrativa para exercer todo o seu poder revelador. Para quem leia esta edição, porém, nada disto será óbvio. Verte-se para português a tradução americana de Seidensticker. Na página 20, lê-se: "Num canto afastado, uma criada lavava qualquer coisa." No japonês, a criada está a lavar os recipientes do chá no "mizuya", o compartimento destinado a essa tarefa. Logo abaixo, diz Chikako: "O cuidado que uma pessoa tem de ter. Fiquei encantada", corresponde no original a "Nada te escapa, pois não? Apesar de todas as minhas precauções, ainda me consegues surpreender". Da taça Shino com papel conspícuo na narrativa, é dito que tem algo de bizarro na sua "história". A palavra japonesa, com ascendência no Zen, é "unmei" (destino, tessitura), a mesma com que Kikuji qualifica o sinal de Chikako e o poder que ele exerce sobre a sua vida; é também para que os "unmei" de Chikako não se atravessem nos dele que se afasta de Yokiko.
À medida que a densa teia alusiva de Kawabata se aperta, torna-se mais calamitosa a tradução. O diálogo inicial do capítulo IV tergiversa totalmente com o sentido da cena. O tradutor português, porém, é fiel ao texto de partida. A idiotice está na tradução americana. Seidensticker foi o divulgador de Kawabata no mundo anglófono. Conhecia a língua japonesa, mas não de um modo especialmente profundo ou sensível. Via em Kawabata uma espécie de Hemingway, sem perceber que o japonês, em talento e tradição herdada, era infinitamente superior. Não apreciou nem compreendeu este texto, como se torna claro nas suas memórias. O seu prestígio anglo-saxónico só pode ser compreendido à luz do autismo linguístico daquele universo, incapaz de cotejar ou reconhecer traduções muito mais ricas, como as francesas, alemãs ou italianas. É claro que há nesse autismo um deliberado propósito imperial-comercial, a que os editores portugueses aderem entusiasticamente. Este entusiamo (ou saloíce) universal consagra um modo de ler e um sistema de gosto de que pelo menos duas consequências estão à vista: a transformação da literatura em acessório de aeroporto e o reforço da Ditadura Internacional da Simplificação, sob a égide da crítica e dos editores americanos. Não sei, portanto, se faz sentido assinalar que algumas universidades portugueses dispõem de departamentos de cultura oriental e que não teria sido impossível encomendar-lhes uma tradução credível.