Falhar melhor

"Quatro Ensaios à Boca de Cena", livro que apresenta como subtítulo "para uma política teatral e da programação", reúne textos de quatro agentes relevantes dessas duas políticas do nosso Teatro - enquanto prática artística e equipamento - e não custa prognosticar que se tornará obra de referência, já que, como afirma José Gil no prefácio, "depois da sua recepção pública, nada será como dantes, no mundo do teatro" (p. 12).

Embora um corpo de ideias fortes seja reconhecível ao longo do livro, as perspectivas e experiências nele tratadas são assaz diversas, sendo essa talvez a sua maior riqueza. A obra inclui textos de dois directores de teatros, um municipal (e marcado pela interioridade), o outro universitário, ambos "estudos de caso" que contudo ganham em ser lidos em âmbito alargado; e inclui outros dois de propósito mais "genérico" ou transversal, que partem porém de um conhecimento do terreno. Estas "clivagens", contudo, reordenam-se a todo o momento em função de outros critérios de análise, que permitem leituras em formato de geometria variável: centro/periferia; nacional/regional/europeu; cultura/indústria; produção/criação; exibição/formação; etc.

Na Guarda, Américo Rodrigues, director do Teatro Municipal (TMG), sente a dificuldade de programar com continuidade e qualidade, dado o carácter meramente formal da Rede Nacional de Teatros e Cineteatros, que o levou mesmo a aderir à Red de Teatros de Castilla y Léon, experiência aliás de saldo ambíguo, nas suas palavras (pelas dificuldades de intercâmbio, face à resistência do público espanhol ao nosso idioma, e pelo conservadorismo dominante nas escolhas dos programadores). Ainda assim, percebe-se que Américo Rodrigues goza do raro privilégio de apoio político da autarquia, o que se materializa (i) na efectiva existência de uma equipa técnica do TMG, coisa não tão banal entre nós; (ii) na não cedência à lógica da "barriga de aluguer" que governa tantos dos Teatros Municipais do país, lógica tão mais escandalosa quanto opera em equipamentos construídos de raiz há pouco tempo (nalguns casos, com programas de construção excessivos para o seu contexto) e com um potencial não explorado.

Manuel Portela aborda a sua "experiência interrompida", entre 2005 e 2008, no Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), em Coimbra, reflectindo sobre (i) a dificuldade em programar de um modo que faça e dê sentido à instituição em causa e que não sucumba por completo à aceleração de fluxos simbólicos típica das nossas sociedades tardo-capitalistas, preservando algum gume crítico no que toca à "produção de mercadorias artísticas e culturais" (p. 159); (ii) a dificuldade em resistir hoje, no plano da programação, à "enorme expansão da cultura e arte de massas e dos meios de comunicação, incluindo os média digitais" (p. 163); (iii) aquilo que, dada a especificidade universitária do TAGV, foi a sua ambição de fazer da produção um "projecto colectivo" (p. 165) que mobilizasse os trabalhadores do teatro, tornando "a instituição inteligível perante si mesma" (id.), "contrariando a alienação que a divisão do trabalho institui" (p. 166) e tentando integrar "uma concepção das formas e das relações de trabalho como parte da própria programação" (id.). A conclusão melancólica do autor não obsta a que quem assistiu a esta experiência a não possa esquecer.

O título do texto de Fernando Mora Ramos, "Teatro Português: para uma Superação da Insignificância", é todo um programa. Trata-se de ver o teatro como "um outro da política" (p. 20), enfatizando o seu potencial cívico, o que passa por, com J. Jourdheuil, mostrar, de modo profiláctico, que "o teatro é grego e o espectáculo é romano" (p. 23). Mesmo em situações de conivência, o teatro, enquanto "emergência do pensável que liberta" (p. 24), "permite uma espécie de colectivo espiritual sensível e laico e pugna pela alegria na terra" (id.). Isto implica, para o autor, desmistificar a ocupação do terreno, conceptual e mediático, pelas "artes performativas" e a confusão entre cultura artística e "indústrias criativas" (este último, um ponto consensual a todos os autores). A superação da insignificância, essa exige estratégia e "um conjunto de medidas articulado" (p. 17) e dotado de continuidade, coisa que deveria ser evidente mas não o é de todo.José Luís Ferreira (JLF) produz o texto mais ambicioso enquanto tentativa de enquadramento, conceptual e político, da situação portuguesa a nível europeu, oferecendo contrastação com os casos francês, espanhol e finlandês. Parte da distinção entre "actividade artística nuclear" e "indústrias culturais", que fundamenta em noções de economia (e economia da cultura) como a distinção entre protótipo e massificação, ou entre invenção e inovação. Os erros sistémicos do caso português - Teatros Municipais novos "oferecidos às autarquias sem que porém tivesse sido contratualizada a sua missão" (p. 124), ausência de economia de escala em virtude de uma inexistente regionalização, etc. - tornam-se chocantes face aos contraste com os países europeus referidos. Como aliás ao longo de todo o livro, percebe-se que as dificuldades do mundo das artes do palco em Portugal derivam da ausência de consenso social sobre aquilo que JLF descreve, com pertinência, como "o investimento dos Estados num aprofundamento ''civilizacional'' que alimente a complexidade das formas de sermos humanos" (p. 147).Neste contexto, que é o de um país no qual o desdém pela coisa cultural e seus agentes não sofre sanção pública, fica-se com a sensação de que este livro nos propõe não muito mais do que um módico de senso comum para o sector. Estranho é que, por força do contexto, isso se afigure quase extravagante. Mas, pelo menos para de futuro se passar a "falhar melhor", a leitura deste livro seguramente nem sempre consensual, será desde agora indispensável.

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