A brasileira que veio do frio

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Agora Manoela Sawitzki vive em Copacabana, onde o Inverno nem se dá. Mas a infância dela tem "chão branco" de neve, lá no Rio Grande do Sul. A família foi avançando desde o interior do interior, de um lugar pequeno para outro cada vez maior, até os filhos chegarem ao mar, voarem por cima.

Aqui está então Manoela, uma de sete irmãos, sentada no sotão da editora Cotovia, com os telhados de Lisboa pela janela.

Aos 31 anos, o seu segundo romance sai no Brasil e em Portugal apenas com meses de intervalo. Tatiana Salem Levy, que publica na Cotovia e é amiga de Manoela, apresentou-a ao editor André Jorge na última Festa Literária de Paraty, e eis "Suíte Dama da Noite" nas livrarias portuguesas antes do Natal.

"Aquele que quer ter vivido, enquanto vivia, que se tranquilize, a vida lhe dirá como", diz a primeira epígrafe. Assim com Beckett ("O Inominável"), somos lançados na vida de Júlia Capovilla, uma menina do interior do Rio Grande que "aos dez anos cultivava o amor fictício" e ficou para sempre à espera da vida verdadeira. O livro abre com a morte do homem que ia ser a sua vida verdadeira mas acabou seu amante num daqueles motéis em que de repente se pergunta: "Que lugar é esse mesmo?"

Por ondas de ocultação/desocultação, o leitor avança do presente para o passado, até o passado alcançar de novo o presente e se precipitar no fim. O passado é a infância gaúcha.

É isso que autora e personagem têm em comum: ambas queriam sair para o mundo o mais rápido possível.

"Era um caminho bem comum, terminar a escola e ir para uma cidade maior", explica Manoela, enquanto o gato da Cotovia passa como um rei. "E eu tratei de encontrar um curso que não havia lá, jornalismo, por ter tanta vontade de sair do interior."

Sendo a mais nova de sete, este interior já não era tão pequeno assim. Os irmãos e as irmãs ainda nasceram em terras menores, antes dos pais se mudarem para a cidadedezinha de Santo Ângelo, onde Manoela nasceu e fez a escola. "É uma cidade que vive da agricultura mas tem uma pretensão urbana, aí com uns 70 mil habitantes."

Modelo com Sartre

Quando Manoela pára a pensar, olhando para cima com os seus olhos azuis, é mesmo uma brasileira que veio do frio, as maçãs do rosto e os malares dos Sawitzki, emigrantes polacos como tantos no Rio Grande. Também tem uma costela italiana, Girardi, do lado da mãe e uma avó de origem alemã, mas os genes polacos - poloneses, como se diz no Brasil - foram mais fortes. "Vendo o ‘Decálogo' do Kieslowski descobri que tenho cara de polonesa."

Quando Manoela cresceu já alguns irmãos tinham saído de casa, e a loja dos pais florescia. "Era uma grande loja com sapatos, tecidos, artigos tradicionais gaúchos. A minha mãe tinha uma equipa de costureiras que fazia os ‘vestidos de prenda'. Não era uma loja sofisticada, era popular, atendia os agricultores que cercavam a cidade."

Foi deste mundo que Manoela saiu para Porto Alegre, preparar a entrada na universidade. Viveu primeiro num pensionato de freiras e a primeira coisa que fez foi procurar trabalho na secretaria do curso para poder ficar independente. "Rasguei os cheques que o meu pai me tinha dado."

Continuou a trabalhar enquanto estudava. Um dia, ao concorrer a recepcionista, a dona da loja pediu-lhe que substituísse uma modelo que falhara numa publicidade. A produção era no edifício da Agência Ford e acabou contratada como modelo. "Eu detestava, achava vergonhoso. Poderia ter-me divertido mais, mas ficava lá sempre um bocado rabujenta. Por exemplo, ia para um ‘set' e levava ‘A Náusea' [de Sartre] para ler num canto, para deixar muito claro que não fazia parte daquilo. Sendo que esse trabalho me salvou muitas vezes."

Tinha tanta vergonha que quando o primeiro romance saiu e o editor pôs na badana que "além de modelo" ela era estudante de jornalismo, Manoela cortou as badanas dos livros todos que ofereceu.

Lia desde criança. A irmã mais velha é artista plástica e um dos irmãos faz teatro em Paris. "Foram grandes influências. Eu invadia os quartos deles à procura de livros, via as agendas com trechos que tinham anotado." Os pais tinham alguns livros, mas não uma biblioteca. "Havia vendedores de porta em porta e o meu pai comprava colecções, Eça de Queirós, enciclopédias, que eu adorava ler. Eu adorava ler dicionário! Escrevia poesia e colocava aquelas palavras que nem sabia pronunciar. Uma vez escrevi ‘elégia'. Uma ‘elégia'! Havia uma colecção sobre os presidentes do Brasil, havia a Bíblia... E eu explorava muito a biblioteca da escola, da cidade."

Foi "lá pelos 12 anos" quando "ia muito ao léu, ao acaso", à procura de livros, que descobriu Platão. "Peguei um livro que me tocou profundamente, ‘O Banquete'. Chorei lendo o discurso do Aristófanes. E era uma edição muito bonita." Ficou com ela até que a rádio da cidade anunciou os nomes dos faltosos. "Fui lá morrendo de vergonha, levei um sermão e isso me impediu de voltar à biblioteca pública. Depois um namorado que tive muitos anos conseguiu encontrar um livro igual, mandou para a biblioteca, pegou o da biblioteca e me deu de presente. Hoje em dia eu tenho aquele livro."

E em "Suíte Rainha da Noite" aparece o mito dos amantes pegados pelas costas, do "Banquete".

Teatro: à procura de uma linguagem

Guimarães Rosa, Virginia Woolf ou Dostoiévski, já são da fase Porto Alegre, de ir aos sebos (os alfarrabistas). Mas Fernando Pessoa ainda vem de Santo Ângelo. "Por volta dos 13 ou 14 anos peguei uma antologia poética no quarto do meu irmão e a ‘Tabacaria' foi um poema que me deu taquicardia." Quando lhe pedem livros da vida, fala sempre no "Livro do Desassossego". De resto, prosa portuguesa, além de Eça, leu algo de Saramago, Lobo Antunes, Inês Pedrosa, José Luís Peixoto, mas nada que a tenha arrebatado.

Muitas das histórias que ouviu na infância foram parar a "Nuvens de Magalhães", seu primeiro romance, publicado em 2002, numa editora local. "É o resultado de muita coisa que escrevi em criança, uma saga familiar meio mágica." Em 2004 publicou a primeira peça de teatro, "Calamidade", encenada em Porto Alegre com cenário do português José Manuel Castanheira.

"O teatro foi um instrumento de libertação em criança. Eu tinha-me juntado aos tímidos, aos pequenos monstros." Achava-se "uma magricela pálida", como a Júlia de "Suíte Dama da Noite". "Criámos um grupo de teatro e eu era uma ditadora, escrevia os roteiros, dirigia, tratava dos figurinos. Éramos Os Pirilampos e ficámos populares." Entre as famílias de Santo Ângelo.

Depois, em Porto Alegre, enquanto estudava jornalismo, viu e leu muito teatro. E a primeira peça "levou a uma cascata de outras", cinco. "Estou buscando minha linguagem ainda. Beckett. Koltés. Genet. Nelson Rodrigues."

Foi fazendo crítica de teatro para a revista "Bravo", artigos como jornalista freelancer, e reescrevendo "Suíte Dama da Noite". "Dois escritores gaúchos acreditaram no meu trabalho e me indicaram para a Record. A primeira avaliação foi negativa com ressalvas. E passei anos reescrevendo. O tempo é um excelente editor: edita o autor."

Só em 2009 entrou mesmo para a Record, uma das maiores editoras do Brasil, e a sua Júlia Capovilla teve um palco nacional.

A espera amorosa

De onde vem Júlia? "De uma imagem que vi. Era uma menina com roupas de mulher, borrada de maquilhagem, na estação de ônibus." No livro, vestida e pintada de mulher, a menina Júlia vai à estação esperar um namorado imaginário. Quando vê Leonardo, sabe que é ele. Dá-lhe o braço como se um grande futuro os esperasse. Ele ri-se do descaramento e leva-a a casa. "E soube que no dia seguinte a veria. E no outro, e no outro também." Ela tem 10 anos, ele 18. São Leon e Pedrita, até ele partir para o mundo, trabalhar com mutilados, em África: "Lá vira jovens sem pernas, seres mutantes com cacos de membros tornarem-se artesãos e serem coroados os reis de suas famílias, meninos surdos cantarem canções com mãos e braços incompletos, carcaças aos pedaços que sorriam gratas, pelos contâineres estrangeiros carregados de remédios e comida."

Quando 15 anos depois se reencontram, ele chega casado com a irmã do marido de Júlia, e vai ser pai. Júlia trabalha numa secretaria, não ama o marido e podia perguntar como Hilda Hilst: "Sou eu esta mulher que anda comigo?"

"Trabalho assim", diz Manoela. "Parto de uma imagem e tento desenvolvê-la, seguir a personagem, até compor uma massa. Escrevo muito como leio. As personagens deste livro são personificações de questões que me interessam. Júlia é a espera amorosa, que é muito feminina. Esse hiato entre desejo e realização amorosa, esse vácuo. A insistência no engano, o apego. Sempre me apareceu como uma personagem trágica, uma Dama das Camélias, uma Ofélia, uma Emma Bovary, capazes de se destruirem, incompletas, amputadas, que vêem na realização amorosa um tripé que as possa sustentar."

O romance que está a escrever agora, "Bons Meninos", vai ter protagonistas homens, e aproximar-se mais da escrita para teatro, "com diálogos directos, sem narração, sem descrição".

Escreve nos intervalos do que faz para ganhar dinheiro. "Não consigo encarar como obrigação, escrever. É para onde eu quero voltar sempre."

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