O défice de representação da população negra na iconografia americana, especialmente no cinema, é uma preocupação antiga de Spike Lee. Já a exprimiu em diversas ocasiões - recordem-se as picardias com Woody Allen e Clint Eastwood - e é um assunto que cruza a generalidade dos seus filmes, e nalguns casos os explica. Isso talvez nunca tenha sido tão verdade como com "O Milagre em Sant''Anna", filme feito em resposta directa à sub-representação (ou à omissão) dos negros americanos nas efabulações cinematográficas em torno da II Guerra Mundial. Um filme de guerra "reivindicativo", se quisermos, "blaxploitation" sem "xploitation" porque Spike Lee não aponta à margem, aponta ao centro. E o centro é o cinema clássico, e é, quem mais podia ser?, John Wayne. Se vemos John Wayne a visitar um filme de Spike Lee podemos estar certos que é uma visita política e que Wayne aparece, antes de mais nada, como símbolo ideológico. É o prólogo de "O Milagre em Sant''Anna": um homem negro, que viremos depois a reconhecer como um ex-soldado protagonista desta história, sentado em casa a ver John Wayne a ganhar a guerra no "Dia Mais Longo", e depois um berro de indignação, qualquer coisa como "esta guerra foi nossa também!".
Ao filme não faltam, portanto, nem clareza de propósitos (reparar uma usurpação) nem ambição (filmar heróis negros que desafiem o estatuto mítico de Wayne). Propósitos e ambições tão nobres e estimulantes como outros quaisquer. O que falta ao filme é estar à altura deles. Para um filme que tão agressivamente se começa por definir, espanta (e desaponta) a singular ausência de ferocidade com que Lee conta esta história sobre uma companhia de soldados negros na Toscana, em 1944, durante a reconquista aliada da Itália. Essa ferocidade - a de outros filmes seus baseados na "questão racial", como, por todos, "Do the Right Thing" - dá lugar a uma moleza narrativa (facto a confirmar com "Malcolm X": Spike Lee e o "épico" não jogam lá muito bem), enredada num complicado flash-back que, acabamos por perceber, só se justifica pelas piores razões (o sentimentalismo choramingas da cena final, o pior fecho de filme da obra de Spike Lee). Os combates e os "horrores da guerra" (como o massacre em frente da igreja) são filmados naquele realismo maquinal que faz da irrepreensibilidade técnica uma medida de indiferença - da indiferença de quem filma e da indiferença de quem assiste.
Evidentemente há um fundo romântico na guerra vista por Spike Lee. O que ele quer é extrair de lá outros "heróis", mas "heróis" na mesma. A crítica da mitologia volve-se em reprodução da mitologia com uma cor de pele diferente. Melhor ou pior, essa tarefa certamente se cumpre. Mas é uma tarefa que deixa lastro na construção de um olhar cinematográfico sobre a guerra - um lastro que se traduz numa candura, numa crença inquestionada, e quase paternalista, na bondade das suas personagens. O que é um drama, se cotejarmos o filme de Spike Lee com muitos dos filmes de guerra (Ford, Walsh, Fuller...) que ele implicitamente critica: a razão que lhe sobra em termos de representação política e sociológica falta-lhe em profundidade poética e filosófica. Não espanta que os planos finais pareçam saídos de um filme de Tornatore. Ao pé dos "Nus e os Mortos" de Walsh ou do "Big Red One" de Fuller, "O Milagre de Sant''Anna" é apenas um simpático e rudimentar filme bem intencionado.