Visita ao museu

"Michael Jackson's This Is It" não é exactamente um filme - é uma espécie de "cadáver esquisito", passe a morbidez da metáfora, que tem a sua razão de ser na origem do projecto. Trata-se de uma montagem profissional, cumpridora e eficiente, dirigida pelo coreógrafo Kenny Ortega, director artístico do espectáculo, realizada a partir dos ensaios da temporada de concertos que Michael Jackson deveria iniciar em Julho último em Londres. Compreende imagens de audições, ensaios e sound-checks filmadas como material de estudo para o coreógrafo que nunca foram pensadas para consumo público, com o intuito de se aproximar o mais possível do que seria o concerto acabado, introduzindo inclusive imagens das projecções pensadas para os écrãs de palco.Quem esperar, no entanto, um olhar mais profundo sobre Michael Jackson, a figura, sairá simultaneamente desapontado e surpreendido. Desapontado porque não há aqui nem grandes planos, nem entrevistas, nem um olhar sobre Jackson para lá da superfície. Nestas últimas semanas de vida, Jackson era já de algum modo um fantasma de si próprio, uma figura resguardada que apenas existia em palco e para o palco, que nunca sai fora da cápsula protectora que criou para si próprio, reciclando eternamente os momentos de ouro da sua carreira (o grosso dos temas pertencem a "Thriller" e "Bad", não por acaso os grandes momentos do Jackson-cantor, com passagens breves pelos Jackson 5, por "Off the Wall" e pelos discos posteriores). A voz está lá, mas só a espaços, com Jackson a poupá-la para os concertos, e as imagens não permitem transpor o muro de fantasia que rodeava o artista, preferindo um retrato interessante mas relativamente limitado da construção do concerto (embora, paradoxalmente, quanto mais avançamos no filme mais "descarnados", menos acabados e menos interessantes os números musicais vão ficando, sugerindo que sem a produção de palco dificilmente o concerto se aguentaria).Surpreendido, porque por trás dessa figura que parece ter começado a acreditar na sua própria mitologia, existia realmente um artista perfeccionista e arguto, em absoluto controlo, que vive, mais do que para a música, para a dança. Sempre que Jackson apenas tem de cantar, sentimo-lo perdido em palco, inseguro de si próprio; mas assim que é preciso dançar, organizar, coreografar, agir, o cinquentão frágil é outra vez um bailarino de excepção, e um artista absolutamente consciente do que quer e como o quer, como se vê nos momentos em que corrige o coreógrafo, o director musical, os dançarinos e toma as rédeas. Há um momento em que o coreógrafo Travis Payne diz que "num concerto do Michael, os bailarinos são uma extensão dele" - e é verdade: não, entenda-se, uma extensão no sentido que fazem aquilo que ele já não pode, mas sim aquilo que ele quer que eles façam, como ele o quer, quando ele o quer, e com ele a fazer ao mesmo tempo. O problema é que esses flashes de energia apenas sublinham como "This Is It" se resume a uma mera peça de exposição numa visita guiada a um museu que acabou de ser renovado mas que ganhou no interim algo de mausoléu. "This Is It" não é exactamente um filme-concerto (porque o concerto nunca teve lugar) mas sim uma espécie de "concerto virtual", mais uma peça hagiográfica num complexo quebra-cabeças de marketing gerido por uma indústria que necessita de rendibilizar uma caríssima produção de palco que nunca foi a cena e restabelecer as finanças de uma organização seriamente atrapalhada. E, para lá disso, dificilmente encontramos outra justificação para estrear em sala o que, na prática, seria um bónus de primeira água num DVD, mas que parece um tanto ou quanto perdido no grande écrã (sobretudo quando toda a gente começa a dizer que "o Michael é genial", coisa que ele nesta altura já não era, e quando entramos nos lugares-comum bem-intencionados da defesa do ambiente, sinceros mas desastrados e algo irónicos quando se sabe como o artista viveu de modo quase recluso). Quando o DVD sair, se calhar, podemos olhar para "This Is It" de outro modo. Agora, dificilmente conseguimos vê-lo como mais do que uma pura jogada de marketing

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