0 Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, inaugurou há precisamente uma semana, uma das exposições do ano: "Sem Saída/Ensaio Sobre o Optimismo", de Augusto Alves da Silva (Lisboa, 1963), nome fundamental da fotografia portuguesa contemporânea. A mostra, comissariada por João Fernandes, reúne um assinalável corpo de trabalho realizado pelo artista desde meados dos anos 1980. Entre as obras apresentadas, que incluem também vídeos e livros de artista, destacam-se quer "Síntese", composta por imagens provenientes de séries anteriores, uniformizadas agora através de novas impressões, quer dois novos projectos, "Iberia", exercício sobre a paisagem composto por mais de cinco mil instantâneos, e "Book", que coloca questões relacionadas com o incessante consumo de imagens "supostamente eróticas". Neste caso, o processo iniciou-se com a publicação de um anúncio na Internet, através do qual o artista se propunha contratar para sessões fotográficas modelos não profissionais, com a condição de estas não terem experiência nos contextos da moda e da arte.
Neste conjunto de imagens, Augusto Alves da Silva confronta o espectador com situações na fronteira entre o erotismo e a pornografia - embora não exista uma única fotografia em que o rosto e a nudez surjam associados e a modelo, que recebe parte do dinheiro de uma futura venda, tenha tido sempre a última palavra. Entre o vagabundo que realiza um gesto obsceno diante de um "stand" de Ferraris e um homem com uma espingarda junto a uma piscina, entre o aterrar dos aviões para a Cimeira das Lajes e umas unhas pintadas de vermelho, entre o desejo e o comentário político, entre a natureza e a arte, esta é uma exposição contra a hipocrisia.
A exposição inclui um núcleo, "Síntese", que resulta de fotografias provenientes de séries anteriores. Qual foi o critério de selecção?
A ideia de "Síntese" foi reunir imagens que ressaltam das séries para as quais foram realizadas inicialmente. Funciono sempre com conjuntos de fotografias e procuro diálogos e interferências entre elas, contudo, notei ao longo dos anos que há umas que sobrevivem sozinhas, que me intrigam ou que atraem a atenção. Parece uma contradição, porque se estou a jogar com conjuntos à partida não devia estar interessado em exemplares únicos; porém, aconteceu.
Pode explicar melhor aquilo que define como intrigante?
Nas séries existem imagens aparentemente mais discretas do ponto de vista do impacto visual que equilibram o conjunto. Mas há algumas outras, poucas, que depois ressaltam, como o veado a olhar para a cidade ou o vagabundo na série "Ferrari".
Nestes casos, podemos falar em "instante decisivo", tal como o definiu Henri Cartier-Bresson?
Em qualquer fotografia, mesmo que encenada, o que está à frente da câmara é o momento em que a imagem fica produzida. Esse instante não o chamo decisivo. No caso do veado, aparece, em cima, do lado esquerdo, um pombo que não vi e que depois aceitei; no caso do vagabundo, há uma pessoa na rua a virar a esquina, que também não vi. No caso do veado consegui pré-visualizar a possibilidade de fazer aquela imagem, na medida em que o animal estava lá.
E no caso do vagabundo?
Também. Porque tinha montado o tripé, a máquina e o flash naquele sítio e queria captar uma situação de contraste entre a riqueza absurda do interior e o exterior daquele "stand" de automóveis. Sabia que, inevitavelmente, passaria lá fora alguém sem a capacidade de comprar um carro daqueles.
Como interpreta o gesto do vagabundo?
Ele pediu-me licença para fazer aquele gesto - em linguagem não verbal, porque tínhamos um vidro a separar-nos. Há uma primeira fotografia em que o flash não disparou: estava de tal maneira nervoso que me esqueci de o ligar. Fiz-lhe então um sinal com as mãos a explicar-lhe que aquilo tinha corrido mal. Respondeu-me com um sinal, como a dizer: "posso esperar". Carreguei o flash, ele voltou a fazer o gesto e eu tirei a segunda fotografia. Perguntou-me, sempre através de gestos, se a segunda imagem tinha ficado bem. Fiz-lhe um sinal de ok com o polegar para cima e despedimo-nos com um adeus. Ele viu-me como uma espécie de mensageiro para um público mais vasto.
Em "Síntese" nota-se a ausência de imagens provenientes das suas duas séries porventura mais políticas: "3.16" (2003) e "Die schönste Fahne der Welt" (2006)... Pode dizer-se que há uma ausência do político?
Não estou de acordo. A imagem do Ferrari é a mais gritante desse ponto de vista, mas todas têm coisas que se relacionam com desequilíbrios, perversões ou absurdos do mundo que construímos: a mota enterrada nas dunas com o motociclista lá atrás; as pessoas que dançam ao vento no convés de um navio - uma imagem à primeira vista bonita do ponto vista de luz e de cor, mas depois extremamente triste e patética, pois aquelas pessoas estão completamente isoladas umas das outras; o "shelter", que é uma espécie de sarcófago, túmulo, nave espacial, no meio da paisagem; as árvores todas queimadas na Serra da Estrela - no Inverno de 1992, tudo o que fotografei em serras portuguesas foram florestas queimadas. A imagem mais feliz é aquela em que podemos perguntar: o que faz um homem com uma espingarda na mão à beira de uma piscina?
É uma imagem plena de humor...
O humor é uma das melhores formas de cativar as pessoas para as coisas. Gosto de pensar num público geral. Não gosto de pensar nem na crítica especializada, nem no público da arte, nem nos directores de museus: não estou a dizer que não respeito essas pessoas, contudo é para mim muito gratificante quando vejo alguém de fora deste meio a entrar num museu ou a folhear um trabalho publicado... A imagem do homem da espingarda na piscina cativa as pessoas, primeiro porque nos faz sorrir - ele tem um sorriso estranho, é mais um esgar do que um sorriso - e depois porque nos faz pensar...
Podia ser um serial-killer...
No laboratório, na Alemanha, por questões práticas, tinha que dar títulos de trabalho. Chamei a essa fotografia "Shooting Tourists", o que provocou um sorriso no técnico que estava a trabalhar comigo.
Em "Síntese" fizeram-se também novas impressões, as imagens ganharam uma outra escala...
Achei que devia unificar as imagens através da dimensão e através da técnica. Se não, tínhamos uma manta de retalhos: uma imagem com 50 por 60 centímetros, outra com um metro e sessenta por dois metros e dez. Pareceria um "bric-à-brac", uma ideia de retrospectiva: a de ir buscar bocadinhos de coisas. No fundo, na minha cabeça, o que fiz foi como se tivesse produzido um trabalho novo. Imprimi as imagens todas com a mesma dimensão e também uniformizei a técnica, porque havia algumas com "passepartout", outras sem. Uma pessoa que nunca tenha visto o meu trabalho pode entrar no museu e achar que aquilo é uma nova série. Disso gosto muito: a possibilidade de se olhar para aquelas imagens desligadas do contexto da série original a que pertencem.
Apresenta novos trabalhos, como "Iberia", um exercício sobre a paisagem realizado em Espanha. Qual a razão da escolha desta geografia?
No "Iberia" fascinou-me a possibilidade de conseguir inventar um trajecto de automóvel do Mar Mediterrâneo ao Mar Cantábrico sem praticamente tocar o asfalto. Consegui encontrar liberdade para isso: nunca passei um sinal de proibido e, das poucas vezes que encontrei um sinal de propriedade privada, não o passei. A ideia surgiu há mais de dez anos, ao encontrar um troço da Cañada Real Leonesa. Depois pesquisei a rede das Cañadas, em Espanha, que já estão muito destruídas e danificadas, por causa das auto-estradas e das obras: segundo me lembro, eram vias de transporte de gado de Norte para Sul e vice-versa. A partir desse momento, começou a fascinar-me o facto de se conseguir atravessar um país inteiro na Europa, sem estar a transgredir nada, através de vias alternativas: juntei estradas agrícolas, estradas usadas por caçadores, algumas difíceis de transitar. Ao longo de dez anos, com recurso a um GPS, fui juntando troços que depois percorri numa só viagem de 18 dias: fazia uma média de 100 quilómetros por dia, desde o nascer ao pôr-do-sol. A viagem transmitiu-me uma alegria e uma calma que dificilmente consegui ter até hoje. Quando cheguei à Cordilheira Cantábrica ao fim dos 18 dias e encontrei as montanhas todas nevadas parecia haver uma lógica qualquer, difícil de explicar, em sair do Mar Mediterrâneo e acabar ali, num ponto em que já não podia avançar mais: o jipe ficou enterrado na neve, a cerca de 20 quilómetros do Mar Cantábrico.
Essa série transmite também uma ideia de solidão, de tristeza mesmo, acentuada pela banda sonora: uma gravação de estações de rádio espanholas...
Sim. A tristeza tem sentido também, mas é difícil descobrir a linha que a separa da alegria... Ao introduzir a música já se recupera mais a alegria, porque a rádio espanhola faz-me inevitavelmente sorrir. A voz das pessoas, a maneira que têm de falar, de traduzir os títulos, a alegria que têm como locutores e a própria escolha das músicas.
Esta série é quase o oposto de "Síntese", não há quase escolha...
Aqui o critério de escolha foi eliminar as imagens muito escuras ou muito claras ou as que ficaram brutalmente tremidas sem intenção. Devo ter feito seguramente 20 mil imagens: há muitas que são tão repetidas e tão parecidas, porque guiava e fotografava ao mesmo tempo - também eliminei algumas assim. A máquina estava colada dentro do carro, fixa sempre num mesmo ponto: ia guiando e fotografando; como estamos numa era digital, não pensava nos custos. Se conseguisse ter tido mais calma a fotografar, poderia nem ter tido necessidade de editar.
Esta viagem é feita em paralelo ao projecto "Book"?
Começou a ser preparada muito antes. A viagem foi feita entre Dezembro de 2007 e Janeiro de 2008. Há 20 anos que vou para Espanha no Natal e no Ano Novo: há uma alegria e uma paz no facto de esquecer essa época durante a viagem. O "Book" começou em Agosto de 2007. Aquilo é em 18 dias, o "Book" demorou dois anos a fazer.
Há uma razão para ir para Espanha nesse período do ano?
São questões pessoais, de família. E a alegria que encontro no meio de desconhecidos.
A propósito de "Book" pode fazer-se a mesma pergunta que Susan Sontag levanta no livro "Olhando o Sofrimento dos Outros": "Que fazer com um conhecimento como o que as fotografias nos trazem de sofrimentos distantes?" Aquilo que nos transmite essa série é, uma vez mais, uma profunda solidão...
O sexo não é indissociável de tudo aquilo que vivemos e sentimos: aquelas imagens são muito mais do que sobre sexo. São sobre mim, são sobre aquelas pessoas. São também sobre a solidão daquelas pessoas, porque ao serem fotografadas estão afastadas das famílias, dos namorados, dos maridos, de quem quer que seja: é uma decisão delas. Há ainda a questão do anonimato, no sentido de não haver coexistência entre nu e cara, que elas colocam como determinante para as imagens poderem fazer-se. Eu próprio me pergunto muitas vezes porque é que estas pessoas quiseram ser fotografadas. Estou bastante satisfeito com as imagens, depois de as ver nas paredes do museu, porque estão distantes de qualquer sensacionalismo, de qualquer abuso ou de qualquer obscenidade gratuita. Reconheço essa tristeza no conjunto total das imagens, apesar de haver outras coisas. Sabia que me queria desviar de fotografias "standard", do género das que inundam as prateleiras dos quiosques. Se havia algum nervosismo, ele era de ambas as partes, no sentido de conseguirmos perceber o que é que cada um de nós estava ali a fazer.
Que razões o levaram a fazer essa série?
Exorcizar o bombardeamento de imagens de carácter supostamente erótico a que somos submetidos, e tentar perceber se era possível criar uma outra coisa baseada nesse exercício. Acho que esse bombardeamento é extremamente agressivo. Quis criar algo que não tivesse esse lado violento.
Quais foram os critérios de selecção, para além dos estabelecidos "a priori"?
Quis ter imagens exemplificativas de que não havia pudor da minha parte, por exemplo, no sentido de mostrar o sexo. Quis também fazer retratos. Procurei ainda lugares estereotipados, como a praia, a cama, mas quis fotografar um nu sem produzir uma coisa que fosse obscena.
Contudo, quando se vê um grande plano de uma masturbação feminina, existe sempre a questão das fronteiras entre o pornográfico e o erótico...
Quis assumir esse risco. Porque não o fazer seria uma coisa inócua, seria um meio-termo. Às vezes é preferível correr riscos e falhar do que não correr. Achei que tinha chegado o momento de abordar o assunto directamente. Quis também acabar com a hipocrisia do que é que se pode e do que é que não se pode ver e pô-lo à vista, tal como o faço com as fotografias de casas, de árvores, de veados ou de neve.
É tudo a mesma coisa...
Sim. Não esteve fora de questão abordar o nu masculino. Quase dava vontade de o fazer, porque a hipocrisia associada às coisas é de facto algo que detesto. O trabalho tem muito a ver com isso também.
Uma outra série, a "3.16", visível na exposição sob a forma de livro, pode servir como exemplo da distância que toma relativamente ao fotojornalismo. Escolheu um ponto de vista invulgar para fotografar a Cimeira das Lajes, nos Açores...
Para mim a Cimeira da Lajes é o momento mais triste da história portuguesa depois do fascismo. Para além de ser um momento tristíssimo da própria história da humanidade. O distanciamento tem a ver com isto: para registar aquele acontecimento através de um trabalho meu não me iria juntar aos 300 ou 400 fotojornalistas que lá estavam todos metidos numa espécie de curral, com aquelas teleobjectivas brutais, para tirar retratos às pessoas a saírem de aviões. Acho que é muito mais interessante construir um objecto que faça reflectir sobre a natureza do acontecimento: fotografei a Base das Lajes à distância, os aviões mínimos a aterrarem, e incluí na série um 12º elemento, um texto, que ocupa a área de uma fotografia, onde, de forma clara e dura, digo o que significa para mim a Cimeira das Lajes e o absurdo de toda aquela situação. É mais eficaz mostrar a escala dos aviões e das pessoas em relação ao mar, ao céu e à terra: como é que alguém com aquela insignificância tem a capacidade de poder destruir o mar, o céu e a terra?
Como surgiu o título da exposição? Ele lembra, de certa forma, o slogan punk "no future"...
Ou o "goth as fuck" que se vê numa fotografia minha de 2001, que me dá vontade de sorrir, porque, apesar de tudo, com tanta coisa má, não se desiste de viver, excepto nos casos em que se comete suicídio, e isso pode acontecer a qualquer um de nós... Até fantasiei com o título em inglês: "A Peculiar Aproach to Optimism", embora ache a versão final bastante melhor... Na situação mais dura da minha vida, a morte da minha irmã Guida, a quem dediquei o livro "Shelter", consegui recuperar a alegria de viver através de duas coisas. Uma delas foi a natureza, a ideia de que há uma coisa que não é construída por nós; a outra, a arte: a actividade humana que acaba por nos transcender. Se às vezes tinha dúvidas se gostava de arte, nesses momentos comprovei que, das actividades humanas, a arte era a coisa que retinha.
A sua arte ou a dos outros?
A dos outros. O optimismo presente no título relaciona-se com a nossa capacidade de nos regenerarmos das situações mais difíceis e conseguirmos continuar a viver, apesar de Auschwitz, da Cimeira das Lajes ou de coisas que acontecem agora. Em Hollywood ainda hoje se realizam filmes sobre a Alemanha nazi quando estamos a passar por coisas tão brutais, cruéis e perversas quanto as vividas naquela época. Perante tudo isto consegue-se continuar a viver, conseguem-se fazer coisas.
Na Pedro Oliveira, agarra o espaço da galeria, que ainda tem uma dimensão considerável, com apenas cinco fotografias de médio formato tiradas em Veneza, lugar onde quase toda a gente pode ser feliz...
Quando os autocarros e os táxis passam a ser barcos e não há carros parece que se está num mundo de fantasia. Estive em Veneza em casa de pessoas amigas: senti neles essa alegria de viverem e trabalharem nessa cidade; um sentimento que não é comum a todos os venezianos, com certeza.
Há nesta série uma obsessão pelos cabelos de mulheres fotografadas de costas e uma imagem "tipo postal" que completa o conjunto...
Essa é uma fotografia bonita, de fim de dia: um barquinho com uma luz na proa, a lua cheia no céu e um canal de Veneza. E depois quatro cabeças de mulheres com os cabelos que brilham com o flash. São imagens de desejo, são imagens belas, bonitas. São imagens pacíficas. Não pretendem ser muito mais do que isso.