O dia em que o "Monstro" perdeu a vontade de jogar à bola
Christian Vieri marcou 270 golos durante toda a carreira
Aos 36 anos, o avançado italiano desistiu de um dos seus mundos
Sobra o "bon vivant", o homem que troca de top-model como quem trocou de clube
Anteontem, Vieri despediu-se de um dos seus mundos. Disse que já não tinha vontade de jogar futebol. Por terra caiu uma frase que o próprio deixou há coisa de um ano (“Não sou um grande filósofo, não gosto de fazer planos a longo prazo. A minha vida é o futebol”) e uma carreira espalhada pela bota italiana (Torino, Pisa, Ravenna, Veneza, Atalanta, Juventus, Lazio, Inter, AC Milan, Sampdoria e Fiorentina) e com apenas duas aventuras, em Madrid e no principado do Mónaco. “O último Bobo Vieri está em tribunal para uma história feia de sombras e espiões”, escrevia ontem Germano Bovolenta numa página interior do diário La Gazzetta dello Sport a propósito do cenário que Vieri escolheu para se despedir (o tribunal, para onde o jogador arrastou o Inter e a Telecom).
Os italianos habituaram-se a conviver com os dois Vieris. Vieri número um: O nómada, o lutador nato, o pé esquerdo brutal, os remates cruzados, a meia volta mais rápida do Oeste, a vida rica em golos e pobre em troféus. Vieri número dois: O bon vivant, o exclusivo, o amigo de estilistas (Dolce & Gabbana, sem dúvida), o estilista (desenhou um coração numa t-shirt e criou a marca Sweet Years com o sócio Paolo Maldini), o adorável e o insuportável, o indispensável nos jogos de cartas, o homem que troca de top-model como quem troca de clube (última aquisição: Melissa Satta).
Nenhum dos Vieris está com meias medidas. “Sou mais homem do que vocês [jornalistas] todos juntos”, disse o jogador, que muitos preferiam que fosse mais como Shevchenko ou Kaká, impiedoso no relvado, tímido e exemplar na vida real. Ele não.
Nas páginas do Reppublica, com o título “Fenomenologia de um campeão feliz e triste”, o jornalista Paolo Berizzi contava um dos “dribles” de Vieri, ainda funcionário do Inter. Propôs um Big Brother (“algures entre o reality show e o cabaret”) para si e para os seus amigos, jogadores de futebol, modelos, actrizes, cantores, luxuosos. Chamar-se-ia “Sem Vieri Não Há Festa” e mostraria tudo, especialmente as piadas do anfitrião, que na intimidade, confirmam os amigos, é uma anedota. O primeiro a discordar da ideia foi Massimo Moratti, presidente do Inter, que gostava de dizer publicamente que é “como um pai” para Vieri.
Viver sem golosO Inter foi o seu nono clube. “Descansem, pretendo usar a camisola às riscas pretas e azuis o resto da vida e ficar em Milão por muito tempo”, disse Vieri, já com a sua quota-parte de lesões e de escândalos (já antes de ser profissional: fazia parte da claque responsável pelo apedrejamento de um adepto do Ascoli que morreu no hospital). Manteve parte da promessa. Seis épocas depois, com 122 golos em todas as competições, mudou-se para o outro lado da rua – manteve as riscas, mudou as cores. O contrato com o Inter acabou no dia 1 de Julho e, cinco dias depois, Vieri assinava com o AC Milan, tornando-se apenas no segundo jogador a ter representado Juventus, Torino, Inter e AC Milan (o primeiro foi Aldo Serena).
Se no Inter estava tapado pela explosão de Adriano e pela velocidade de Martins, o vizinho AC Milan exibia Andriy Shevchenko e Alberto Gilardino. O atleta que alguém uma vez comparou a Sansão não era o mesmo de sempre. Vieri estava mais à vontade com a alta sociedade, com as festas, as passerelles, as discotecas, os bares (abriu o Clan Café) e os restaurantes (é sócio do Baci e Abbracci) – ambos alvos de cocktails Molotov, cortesia dos adeptos do Inter – do que com a bola.
“Tenho 30 anos, posso viver sem golos”, justificava Vieri (número dois), que chegou a desertar de um estágio para não perder a festa da Dolce & Gabbana, com a presença especial da amiga Naomi Campbell. Vieri raramente se defende das “mentiras”. “O Vieri está a abusar da noite. O Vieri troca de namorada todos os dias. O Vieri não é de confiança. Não ouço. Ouço apenas a minha consciência”.
A consciência diz que Vieri (número dois) está a ganhar terreno a Vieri (número um), que o Midas, o Monstro já não tem vida para a Série A. “Já não tenho vontade”.