A voz de uma mulher, dirigindo-se a representantes dos pilares do regime iraniano, a milícia Bassij e os Guardas da Revolução: "Há uma coisa que me chateia nestas pessoas. Elas não me olham nos olhos. O primeiro contacto com uma pessoa é o olhar. É muito difícil não nos olharem nos olhos e não nos aceitarem o olhar. Quando falamos com eles, eles baixam os olhos antes de responderem. Eu acho que o véu deve estar dentro de nós. Se o olhar não é puro é indiferente que nos olhem ou não".
Ouvimos a voz dela, mas vêmo-los só a eles, que acederam a explicar-se (respondendo a perguntas previamente gravadas): é que a mulher "com um ligeiro revirar de olhos pode virar um homem do avesso, mesmo um homem muito religioso"; ou: "porque é através dos olhos que o diabo dispara"...
Isto está em "Bassidji", de Mehran Tamadon. Em "Shirin", de Abbas Kiarostami, está o império do feminino - e um império dos sentidos. Não custa perceber porque é que só chegará ao Irão através de DVDs piratas: no ecrã, e durante cerca de hora e meia, os rostos - o olhar - de 114 mulheres, actrizes iranianas de várias gerações (uma europeia entre elas, Juliette Binoche), que observam o que se passará num palco: a representação de um poema persa do século XII, "A História de Khosrow e Shirim", sobre os amores de uma princesa arménia pelo rei da Pérsia e sobre o triângulo de paixões que se forma quando Shirin conhece Farhad.
Elas (e este será um retrato de senhora multiplicado por 114) reagem, choram, riem - o que vêem está fora de campo para nós. E Kiarostami, voyeurista assumido, já que gosta de olhar para quem está a ver, observa-as. Nós estamos com ele. E imaginamos o que elas podem estar a imaginar. Ou seja, estamos numa caixa de ressonância onde a fantasia e a nossa memória de espectadores (e somos espectadores daquelas espectadoras...) estão a ser permanentemente alimentadas, excitadas. E sempre dentro e fora, mergulhados na emoção, subjugados perante 114 mulheres (veja-se: os homens são apenas figurantes que se descobrem naquela sala de teatro...) e ao mesmo tempo conscientes dos próprios mecanismos que se estão ali a desenrolar entre nós e o ecrã.
E como é que isto foi feito? Aquelas actrizes não estavam a ver nada. Tinham apenas indicações para onde deviam olhar; cada uma teve direito a cinco minutos - explicou Kiarostami quando "Shirin" foi exibido o ano passado no Festival de Veneza -, e durante esse tempo, sugeriu-lhes o realizador, eram livres de se lembrarem de filmes que tivessem visto, de pensarem em momentos de alegria e tristeza; tinham de fazer "a sua própria viagem emocional". Só depois o texto, a representação teatral, foi incorporada. E a montagem, que durou seis meses, tratou de tornar transparente esta monumental construção.
Mas isso é o "Kiarostami's touch": sempre uma textura sinuosa, vertiginosa, diríamos até perversa, por trás da aparente simplicidade; uma consciência aguda, tão aguda que chega a ser cruel, das transferências que se dão em frente ao ecrã. Kiarostami falará direito por linhas tortas, como as estradas que sulcam os ecrãs nos seus primeiros filmes (nem todas existiam, aliás; tornaram-se "reais" para os filmes). E é por aí que anda a dimensão política do seu cinema, por caminhos mais elípticos do que os da nova geração de cineastas iranianos - veja-se como Abbas, que deixou o campo e chegou à cidade, e à mulher iraniana, em "Ten" (2002), na altura em que os cineastas mais jovens começavam a esventrar e a expôr Teerão, filmou uma cidade enfiando-se num carro.
Por isso, por esse lado mais oblíquo do seu cinema, alguns o acusam, no Irão, de fazer filmes apolíticos. Ou de filmar para audiências estrangeiras. Num perfil/entrevista no "Guardian" Abbas respondeu: "Se ‘político' significa ser militante eu não farei nunca um filme político; nunca vou sugerir a alguém que vote por uma pessoa ou pela oposição. Não estou a forçar as pessoas a reagir, estou a tentar atingir uma verdade na vida quotidiano. Sempre que conseguirmos tocar essa dimensão isso é essencial e profundamente político."
Durante a "revolução verde" Kiarostami estava em Itália. Na Toscânia, onde filmou e monta um novo filme, as atenções estiveram divididas entre a mesa de montagem e as imagens que chegavam de Teerão pela Net. "O que se passa no Irão é muito sério - posso dizer sem hesitação que é uma segunda revolução. O que é notável", disse à reportagem da revista "Sight and Sound", "é que é liderada pelos filhos da primeira revolução - por isso como é que se podem ignorar os protestos?".
O cineasta terminava aquela que é a sua primeira longa-metragem rodada fora do Irão e o seu primeiro filme falado em várias línguas, francês, inglês e italiano: "Copie Conforme", com Juliette Binoche e o barítono William Shimmell. Ela é uma antiquária, ele um escritor inglês que promove um livro em Itália onde defende que a originalidade e a autenticidade são falsos conceitos, já que uma cópia pode ser tão tão boa como um original. E é então que "ela" e "ele" começam a comportar-se como casal, não o sendo, numa espécie de impostura consentida, falsificação que se transforma em... verdade.
Shirin
Abbas Kiarostami
(Riscos)
Londres 1, 20, 20h30